quarta-feira, 4 de março de 2020

Tios

Quem são? O que significam? Só os antropólogos fazem essas perguntas que todos sabem. Tios são os irmãos dos pais e ponto final.

Sim, mas os pais não precisam de mediadores para defini-los. Os pais têm um elo direto conosco: são genitores; os que nos inventaram biológica e moralmente. Para nós, aliás, o ideal é que o genitor seja também o pater — o pai. Se a mãe-geradora é uma só pessoa, tal não ocorre com o pai, que pode ou não ser o nosso genitor. Quando não há simultaneidade entre genitor pater, entramos — para dizer o mínimo — num espaço pantanoso...

Os antigos romanos diziam: “Mãe certa, pai incerto”, traduzindo o ideal de o genitor ser o pai, uma dimensão ausente como axioma no caso materno, de cuja barriga todos saímos. Mas quem lá colocou a semente?

Os romanos também usavam um mesmo termo — avunculus— para designar o tio materno e o avô chamado de avus. Avoengos e tios, exceto pelo diminuitivo, eram chamados pelo mesmo termo. Tal prática não é incomum, e eu mesmo testemunhei tal identificação nos grupos tribais jê-timbira que pesquisei, entre os quais é o tio materno (ou o avô chamado pelo mesmo termo de parentesco) é quem transmite o seu nome para o sobrinho (ou neto). E como nestas sociedades os nomes dão direitos a pertencer a grupos e associações, há uma identidade entre tios-avôs e sobrinhos-netos.

Aliás, em muitas sociedades o casamento preferido é com a filha do tio materno. O que seria uma prima é, em outros mundos culturais, uma “esposa” potencial. O tio vira um sogro, papel relacionado ao de cunhado entre nós...


Isso relativiza o papel de pai. Entre nós, a figura paterna tem prioridade como fundador de uma família, formando o triângulo consagrado constituído por pai, mãe e filho. E muitas sociedades monoteístas o simbolizam como o Criador do Mundo como no cristianismo.
Os avós e os tios um tanto marginalizados são figuras destacadas nas sociedades onde a transmissão de propriedade ocorre pelo lado materno. Nelas, quem tem autoridade é o tio materno, e não o pai. Entre nós, é o pai quem “dá a mão da sua filha em casamento”; em outros sistemas, os tios e os avôs é que, como se diz em antropologia, “doam” as mulheres. Sem tais trocas (pois quem doa, recebe) seríamos — como demonstrou Lévi-Strauss num estudo fundador — incestuosos, pois estaríamos recusando a reciprocidade e a comunicação. A essa altura, cabe rememorar o axioma: “Não nos casamos com nossas irmãs (ou filhas) confiando que você faça o mesmo; pois, deste modo, trocamos de irmãos e filhos, estabelecendo laços com outros grupos sociais.”

Escrevo essa introdução acadêmica motivado pela irreparável perda de minha tia Lucília Gonzaga da Matta, mulher de meu tio Mario; filho caçula de minha avó Emerentina e do meu avô Raul. Esse tio Mario que, com meus tios Silvio e Marcelino, foram formadores de minha persona social, compensando a silenciosa autoridade de meu pai. Foi no embalo triste do funeral que enxerguei o papel de tia e tio. Realmente, os tios (como os avôs) servem como amortecedores das proibições contidas nas paternidades. Mãe e pai têm tudo a ver com a fabricação e o cuidado do corpo, ao passo que o elo com tios e com os avoengos é crucial como um apadrinhamento para a vida fora do corpo (da nossa “alma” ). A constituição de nossa pessoa como uma entidade pública. Com o direito a escolher e ser livre.

Se o pai tem que manter com o filho uma relação permeada de respeito, tal não é o caso dos tios, que têm com os sobrinhos um laço mais solto e livre, conforme foi o meu caso.

Foram meus tios que me ensinaram a dançar e namorar. Foi deles que ouvi anedotas e histórias de sexo absolutamente ausentes na casa natal. Meus tios e alguns empregados foram básicos na minha educação sentimental. Hoje, sei como eles desafiaram os limites da figura do pai-genitor e, como ensinou Freud, castrador. Se o pai não fala, os tios revelam; se o pai nega; os tios oferecem o cigarro ou o copo de cerveja. Se o pai não contou jamais uma aventura ou mentira, os tios podem abusar dessas narrativas.

Tia Lucília não foi uma mulher comum. Além de esposa perfeita para um amazonense um tanto perdido em Niterói, ela era filha do grande dramaturgo (hoje lamentavelmente esquecido) Armando Gonzaga, autor de um conjunto notável de comédias nas quais tudo se passa entre casais, padrinhos e empregados. Entre os dilemas do viver melhor do que se pode ou deve; entre as motivações de uma sociedade que tem sérias dúvidas se o trabalho é maldição e o emprego público, uma dádiva divina. Lucília foi um bálsamo na vida de tio Mario.

E ele, por seu turno, foi um bálsamo na minha vida realizada, como todas as vidas, entre o profundo respeito pelo pai imediato e restritivo e as aventuras e intimidades consentidas pelos tios — essas figuras situadas entre a rua e a casa; entre os sagrados genitores e os amigos que nos levam às experiências sem as quais jamais seríamos seres humanos conhecedores da importância dos de fora — esses abençoados tios.

P.S.: Meu mentor, professor, brasilianista consagrado, Richard Moneygrand disse o seguinte: “O Brasil precisa de menos pais e mais tios”.

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