sábado, 22 de fevereiro de 2020

O uso do cachimbo

Em qualquer nação democrática do mundo o general Heleno teria sido sumariamente demitido ao xingar o Parlamento de modo tão desmedido e fora de propósito. Além disso, estaria respondendo a processo por atentado a um dos Poderes constituídos. No Brasil, não. Imagina se o presidente Jair Bolsonaro afastaria o velho líder. O Congresso se mexeu, é verdade, e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, anunciou que vai colocar em votação pedido de convocação para Heleno se explicar. Mas ainda é pouco.

Se a frase do general tivesse sido pronunciada dentro de um quartel, a democracia brasileira estaria sendo evidentemente ameaçada e, a essa altura, poderia estar quebrada. “Não podemos aceitar esses caras nos chantageando, foda-se!”, disse Heleno, referindo-se ao desejo do Congresso de mexer no Orçamento da União, pressionando por emendas parlamentares. O que isso significa, além de desrespeito? Significa que o general entende como chantagem um poder legítimo dado pela Constituição ao Poder Legislativo.


O ministro deveria ter pedido desculpas imediatamente. Afinal, poderia dizer, foi um papo informal sem a conotação política que se quer dar agora. Mas, não. O que Heleno fez foi confirmar a compreensão equivocada que tem da distribuição de poderes. Ele disse que a conversa foi objeto de vazamento para a imprensa. Não negou o seu teor nem a sua intenção. E esse, vejam só, era o general mais respeitado no início do governo, considerado um moderado quando o temido era o hoje pacificado vice-presidente Hamilton Mourão.

O problema do general é o uso do cachimbo que faz a boca torta. Nenhum militar nasce antidemocrático ou avesso ao cumprimento da Constituição. Ao longo da carreira, o seu inestimável apreço à hierarquia também pode ser medido pelo obsequioso respeito a normas, regras e leis. Ocorre que eventualmente um homem que passou a vida inteira recebendo e dando ordens que não podiam ser contestadas habitua-se a esse mundo do “eu mando e você obedece!”.

Por isso Heleno gritou “foda-se!”. Falava com o cacoete de um general, irado com o que via como insubordinação. Afinal, deve ter concluído, o Orçamento é do Executivo e esses caras deveriam simplesmente sancioná-lo. Claro que apenas o cacoete não construiria uma bobagem do tamanho da expressada pelo ministro. O fato de serem muitos os militares no governo (no Palácio, não há mais civil em cadeira de ministro, são três generais da reserva e um major da PM reformado) tampouco induziria a esse tipo de arroubo. Um outro general, o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, estava negociando com o Congresso a execução de emendas parlamentares quando Heleno atalhou.

Heleno tem as costas quentes, e sabe muito bem quem o protege e por quê. O presidente da República, um veterano parlamentar com sete mandatos de deputado federal, que conhece muito bem como os poderes são distribuídos, deveria ser o primeiro a conter ímpetos totalitários de seus subordinados. Mas, ninguém tem dúvida, Bolsonaro concorda com o equivocado general e ele mesmo não tem lá grande apreço pela democracia. Por isso o ministro segue no seu cargo como se nenhuma barbaridade houvesse pronunciado.

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