domingo, 3 de novembro de 2019

A história de umas sandálias

A moça tinha uma placa no peito: “Janaína Muanda”. Estranhei encontrar uma angolana com um nome onde o tupi se misturava com o bacongo. Eis a lusofonia colocada em prática — pensei. Como não havia mais ninguém na fila do supermercado ficamos um tempo conversando. Janaína ganhara esse nome porque, 30 anos antes, uma médica brasileira, de visita a Luanda, fora ao Mercado de São Paulo e encontrara Dona Ximinha, a mãe de Janaína, grávida de nove meses, vendendo fruta. Simpatizaram uma com a outra. A médica voltou ao mercado por diversas vezes. Contou-lhe a lenda de Janaína. Quando a menina nasceu, Dona Ximinha deu-lhe o nome da médica.

Começamos a conversar sobre nomes e destinos e acabamos, quase sem dar conta, discutindo a difícil situação de Angola e do mundo. Quando me queixei dos dias que correm, Janaína saiu em defesa deles. Fiquei surpreso, pois são poucos aqueles que defendem estes dias. A maioria das pessoas mostra mais carinho e simpatia pelo passado ou pelo futuro do que pelo presente. O presente é muito desvalorizado.

Então, Janaína contou-me a sua história. Em criança, viveu tempos realmente difíceis. Naquela época partilhava as sandálias com a mãe. Acordava de manhã muito cedo, ainda o sol não tinha nascido, para acompanhar a mãe, Dona Ximinha, ao mercado. Ela descalça, a mãe calçada. No mercado, Dona Ximinha descalçava-se e Janaína ia a correr para a escola com as sandálias dela. Na escola, os outros meninos troçavam de Janaína por calçar umas sandálias muito maiores do que os seus pequenos pés. Contudo, pelo menos tinha sandálias. Mal as aulas terminavam, a garota corria para o mercado, a devolver o calçado à mãe. Voltava para casa descalça. A maior alegria que teve em criança foi quando o pai apareceu em casa com um par de sandálias novas, ajustadas aos seus pés. Janaína dormia abraçada a elas.

Fui forçado a dar-lhe razão. Angola enfrenta muitos problemas — milhões de desempregados, uma sociedade dividida entre uma larga maioria de pessoas muito pobres e uma estreita minoria de gente extremamente rica; assistência médica precária e um péssimo sistema de ensino público etc. Contudo, já vai sendo difícil encontrar alguém descalço nas ruas das principais cidades. O mesmo acontece no resto do continente.

“O teu problema é que tens mais sapatos do que pés”, dizia-me a minha avó, sempre que eu me queixava sem um motivo sério. Depois contava-me a história do Joãozinho Centopeia, que nascera com três pernas e três pés, de forma que quando precisava comprar sapatos ficava com um a mais. Acho que ela inventava aquelas histórias, as quais, de resto, seriam impublicáveis nos dias que correm. E pronto, lá estou eu a queixar-me dos dias que correm. Venho tentando não o fazer, juro. Lembrar-me da história de Janaína ajuda-me. Lembrar-me da minha avó também. Elas estão certas: por um lado o mundo já foi um lugar pior, guerras por todo o lado, ditaduras e miséria extrema. Por outro, na maioria das vezes as nossas queixas (as minhas queixas) são fúteis. Afinal de contas, tenho sapatos. Tenho, inclusive, mais sapatos do que pés.
José Eduardo Agualusa

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