quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Biolsonaro promove hiperinflação perigosa das palavras

Franz Kafka e Adolf Hitler teriam se encontrado numa das noites boêmias de Praga, no período entreguerras. O escritor judeu, considerado um ótimo ouvinte por seus amigos, teria por acaso escutado os delírios racistas e autoritários daquele austríaco aspirante a pintor e a ditador. Kafka teria se arrepiado: o que se diz abre caminho para o que se quer fazer, o que se pode fazer, e aquelas palavras abjetas prenunciavam a barbárie em escala industrial. A cena termina com um paralelo de dois momentos, em meados dos anos 1920: o autor de O Processo agoniza no leito de morte enquanto o autor de Mein Kampf discursa a seus apoiadores numa cela de prisão. O fio de pólvora do século XX está aceso.

Quem imagina essa história é Ricardo Piglia, num dos maiores romances argentinos do século passado, Respiração Artificial . Publicado em 1980, o livro comentava de modo oblíquo a ditadura no país, instalada entre 1976 e 1983, uma das mais sanguinárias da América do Sul, que nesses anos estava quase toda sob o autoritarismo: Uruguai, Chile, Paraguai e, evidentemente, Brasil, entre outros.


A cena narrada por Piglia não me saiu da cabeça nos últimos dias, conforme o tiete de torturadores e assassinos Jair Bolsonaro disparava barbaridades verbais (Antonio Prata encontrou a palavra exata: “ logorreia ”). Foram tantas, que não vale a pena enumerá-las, e isso levando em conta apenas os últimos quinze dias. Imaginem quantas vezes elas se multiplicariam se incluíssemos seus sete meses e poucos dias de Presidência, ou suas décadas como deputado federal, de muita verborragia e quase nenhum projeto. A primeira vítima de Bolsonaro, a que ele volta todo dia para atacar e degradar, são as palavras.

Não há consenso entre seus críticos se o jato de atrocidades verbais é estratégia – de modo a desviar atenção e a tomar as rédeas do debate público – ou tosquice – ele agiu assim por toda sua carreira política, não mudaria agora que tem ainda mais poder. Uma coisa, aliás, não exclui a outra.

Há indícios sólidos, porém, de que a situação é insustentável, ainda mais num país como o Brasil, com pouca tradição de debate público e muitos fantasmas autoritários que permanecem no nosso cotidiano (por exemplo, o assassinato do cacique Emyra Wajãpi , liderança indígena, um tipo de atrocidade que ocorre desde, mais ou menos, 1500). A questão é: como responder ao vômito de barbaridades verbais do presidente, de modo a preservar a democracia e a civilidade? É possível?

Não há receitas. Podemos tentar medidas semelhantes às de países que vivem situações parecidas, como recomenda o crítico Idelber Avelar : a imprensa dos EUA usa em manchetes a expressão “Trump mente ao dizer que...” quando o mitômano deles agride a inteligência alheia com falsidades, calúnias e lorotas em geral. Isso provavelmente ajudaria, por dar concretude às palavras.

Afinal, este é um dos piores aspectos da disenteria verbal que caracteriza Bolsonaro: as palavras se esgarçam, se afrouxam e por fim se esvaziam. Poderíamos comparar esse desgaste a uma espécie de hiperinflação. A cada dia que passa, e a cada pesquisa ou manifestação que indique perda de apoio político, o presidente aumenta o volume de suas declarações cruéis e covardes. Seus apoiadores correm para naturalizá-las; a imprensa se atrapalha e provoca o mesmo efeito, por negligência, imperícia ou imprudência – às vezes pelo interesse mesmo. As palavras passam a valer menos, os limites do que pode ser dito se alargam. Segundo o romance de Piglia, não demora para que também se alarguem os limites do que pode ser feito – algo literalmente mortal num país como o Brasil.

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