domingo, 30 de junho de 2019

Euclides da Cunha em tempos de Lula e Bolsonaro

Homenageado deste ano na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), Euclides da Cunha é um personagem singular no panteão de nossa literatura. Seu romance "Os sertões: campanha de Canudos" costuma ser citado como conquista maior na cultura nacional. O relato de Euclides serviu de inspiração tanto a escritores (do peruano Mario Vargas Llosa ao húngaro Sándor Márai) quanto a cineastas (de Glauber Rocha a Sérgio Rezende). Publicado em 1902, cinco anos depois dos eventos, quando a destruição de Canudos pelas tropas da recém-proclamada República não despertava mais tanto interesse, "Os sertões"
foi um best-seller instantâneo e inesperado. Rendeu honras a Euclides até sua morte trágica, aos 43 anos, vítima de um assassinato passional. Quem lê o livro, no entanto, fica intrigado.

Primeiro, pelo estilo empolado e rebuscado. Difícil acreditar, pelo tom professoral, pelo vocabulário ainda mais árido que as paisagens sertanejas, que Euclides tenha sido contemporâneo de mestres da ironia, como Machado de Assis ou Lima Barreto (está numa geração intermediária). Segundo, pela falta de rigor nas descrições geográficas e pelas teorias científicas fajutas usadas para relacionar o clima da região ao espírito dos rebeldes de Canudos (apesar de Euclides ter sido engenheiro, professor de lógica e de, depois de famoso, ter chefiado missões de reconhecimento na Amazônia). Terceiro, pelo racismo flagrante e abjeto (ainda que Euclides fosse abolicionista e republicano convicto, cativado pelos ideais da Revolução Francesa e pelo positivismo de sua formação militar). Qual o motivo da sobrevivência de Euclides da Cunha como autor essencial nos dias de hoje?

Uma resposta foi ensaiada pelo crítico literário Roberto Ventura, um dos maiores especialistas na obra euclidiana, no opúsculo "A terra, o homem, a luta", que acaba de ser relançado. O título de Ventura reproduz a divisão que Euclides tomou emprestada do historiador francês Hippolyte Taine para organizar, de acordo com os cânones do naturalismo, as três partes de sua narrativa. 

"Os sertões" funcionou, segundo Ventura, como uma espécie de mea-culpa de Euclides pela cobertura ingênua da Guerra de Canudos para o jornal O Estado de S. Paulo, repleta de propaganda republicana, sem nem mencionar o massacre dos rebeldes liderados por Antônio Conselheiro. Logo na nota preliminar, Euclides encerra a questão sobre a campanha: “Foi, na significação integral da palavra, um crime”. “Em 'Os sertões', acusou o Exército, a Igreja e o governo pela destruição da comunidade e fez a autocrítica do patriotismo exaltado de suas reportagens”, escreveu Ventura (também morto trágica e prematuramente, aos 45 anos, num acidente rodoviário em 2002, quando preparava uma biografia de Euclides, cujos trechos estão reunidos no volume póstumo "Euclides da Cunha: esboço biográfico").

A atualidade de Euclides não se restringe à qualidade da narrativa jornalística, essencial para preservar a memória dos fatos. Mais que isso, está na persistência, quando não da realidade, certamente das mentalidades que conduziram ao embate no sertão baiano, presentes até hoje na sociedade brasileira.

De um lado, o fanatismo religioso, o sebastianismo, a visão messiânica de um líder com forte apelo popular, a quem se atribuem poderes sobrenaturais, derrotado e visto como injustiçado. Do outro, a força de uma milícia cruel e sanguinária, que se julga garantida pela razão e pela lei, munida, nas palavras de Euclides, do “argumento único, incisivo, supremo e moralizador — a bala”. Não é absurdo enxergar nas figuras que hoje polarizam o debate político brasileiro — o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro — decalques das ideias daquela época. Mais de 120 anos depois, o valor da obra de Euclides não está nas explicações geográficas, climáticas, raciais ou científicas, todas elas ultrapassadas. Está na explicação para a tragédia do Brasil.
Helio Gurovitz

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