quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Calma, que o Brasil é nosso

Comemorar a vitória do adversário não é usual na natureza humana. Vencedores festejam e derrotados tomam fel no velório. Mas aos Nostradamus de xepa de feira e Cassandras de ocasião convém receitar boas doses de Rivotril e baldes de suco de maracujá geladinho. Esta não terá sido a última eleição do século: o mais tardar daqui a dois anos serão disputados pleitos municipais, nos quais mais uma vez o humor popular será testado e nenhum eleitor será obrigado a contrariar seus interesses votando em quem não atender à vontade comum. Quem chora agora pode comemorar em outra ocasião, pois, todo mundo sabe, um dos maiores e mais ministrados tônicos da velha democracia é o rodízio do poder.

Convém, de início, reconhecer que poucas disputas mobilizaram o ímpeto bélico da cidadania brasileira como esta. Mas um curso bem frequentado de História do Brasil bastará para esclarecer que a polarização nunca foi algo tão inusitado assim. Em 1930, no meu Estado natal, a Paraíba, liberais queimaram negócios de perrepistas depois do assassinato do presidente do Estado, João Pessoa, em Recife. Suicida vocacional, Getúlio Vargas disparou contra o próprio coração, parte por não suportar o opróbrio do “mar de lama” de que era acusado pelos inimigos da UDN, parte por saber que o tiro de seu revólver levaria seus devotos à rua para evitar a subida ao poder dos desafetos. E assim foi: jornais da oposição foram empastelados e uma multidão seguiu o féretro pelas ruas da então capital federal do Catete ao aeroporto, onde o cadáver pranteado como nunca nenhum outro antes embarcou para a última morada, em São Borja. Entrou em meus compêndios escolares o tiroteio na Praça da Bandeira, em Campina Grande, em 1950, e nele se enfrentaram antigos correligionários, os amarelos de José Américo, fundador da UDN e candidato do PSD, contra os brancos do ainda udenista Argemiro de Figueiredo. Dois operários e um bancário morreram na refrega. Não foram os únicos imolados nas disputas políticas brasileiras. Baleado por João Dantas, João Pessoa, candidato a vice na chapa derrotada de Getúlio na eleição de 1930, inspirou hino, deu nome à capital de nosso Estado e a muitas ruas e avenidas de cidades brasileiras, depois que seu corpo inanimado ter animado a revolução dos tenentes, que virou a política de pernas para o ar.

Pode-se dizer – e quem o disser não mentirá – que a polarização se tornou mais aguda com o segundo turno, que privilegia o “ele não” desde sempre. E que se fez odienta com a campanha do “nós contra eles”, tática de Lula para reduzir o impacto do mensalão contra sua reeleição, repetida desde então na versão maniqueísta de romance de capa e espada.


O pleito do mês passado introduziu um elemento novo no panorama, antes controlado de cima da ponte que dá acesso ao castelo do poder: a interferência da cidadania, usando um instrumento da velha guarda, à qual a esquerda se associou gostosamente na rapina do erário com o baronato político, contra os manipuladores de sempre. Refiro-me à democracia dita direta. Ludibriada no desgoverno da chefe de Estado menos aquinhoada de inteligência desde Tomé de Souza, governador da Bahia, a classe média, após ter ocupado as ruas para reclamar da desídia do Estado, recorreu às mídias eletrônicas não convencionais para dar o drible da vaca nas organizações criminosas, ditas partidárias. Estas recorreram aos truques mais sórdidos para se manterem no topo. Primeiramente, patrocinaram candidatos exclusivos das legendas, financiamento público bilionário das campanhas pagas por propinas desmedidas, foro de prerrogativa de função e outros truques canalhas.

Depois, veio a guerra ideológica. Um best-seller do New York Times, Como as Democracias Morrem, de Steven Levitsky & Daniel Ziblatt, socorreu os ignorantes que denominaram a tomada de poder pelo cidadão de “neofascismo” e “protonazismo”. Com a desastrada adesão do fake Pink Floyd Roger Waters, mexendo Mussolini, Hitler, Trump, Putin e Bolsonaro no mesmo caldeirão. O povo nem ligou e demoliu a farsa, que fez daintelligentsia a versão acadêmica e artística da “jumentice”, e sapecou na farsa o peso de quase 58 milhões de votos para o capitão deputado.

Em plena ressaca do mau humor da derrota, a patota organizada da “resistência” contra o empurrão da velha política para fora do poder republicano por quatro anos inspirou-se nas pragas rogadas por Tirésias na Roma antiga. A executiva Mônica de Bolle clamou contra a indicação de Roberto Campos Neto para a presidência do Banco Central (BC) pela precariedade intelectual de seu currículo. Faltava-lhe, segundo ela, um doutorado, um mestrado que fosse. Como se Henrique Meirelles, presidente tucano do BC de Sir Luiz Inácio tivesse defendido teses nos anos em que foi corretor na Bolsa de Valores de São Paulo do Banco de Boston, no qual chegou sem diploma a ocupar a presidência internacional.

Os salões e corredores do Itamaraty fervilharam de fofocas contra o embaixador Ernesto Araújo por ele não ter ocupado uma embaixada do circuito Elizabeth Arden antes de chegar à chancelaria. O primeiro ministro das Relações Exteriores da República foi Quintino Bocaiúva, de profissão político. O atual, Aloysio Nunes Ferreira, praticou a diplomacia como segurança do chefe guerrilheiro Carlos Marighela, no exílio em Paris e na política profissional no Estado de São Paulo. Entre eles, ilustres chanceleres não cumpriram a última condição para o cargo: os ex-presidentes Campos Salles e Fernando Henrique Cardoso, verba gratia. Ou o melhor exemplo: Osvaldo Aranha, revolucionário de 1030, pau pra toda obra nos governos de Vargas e o maior ocupante do posto na História.

Quem não sabia fique sabendo e, para tanto, como no caso de Bolle, basta consultar o Google. Aranha foi o que nenhum outro brasileiro foi: secretário-geral das Nações Unidas, tendo presidido a sessão histórica em que as colônias de judeus no Oriente Médio se transformaram no Estado de Israel, cuja bandeira, aliás, o oficial presidente eleito reverencia, abrindo a exceção de único filonazista da História que é também filossionista, e não anti-semita, como os citados precedentes históricos de Alfred e Benito.

Do mau humor tornado mau agouro não escapa, é claro, Sergio Moro, que ultimamente tem substituído na condição, antes conferida a Chico Buarque, protomártir da esquerda Rouanet, de “unanimidade nacional”. Como é público e notório, o juiz federal, que teve o topete de condenar o çábio de Caetés à cela “de estado maior” na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, renunciou à carreira na magistratura para ocupar o Ministério da Justiça no futuro governo. Das sombras de seu merecidíssimo oblívio o emérito professor Tomas Turbando emergiu para exigir do colega a chamada “quarentena ética”. O rábula diplomado, que mereceu o epíteto que usou em piada de mau gosto, chama-se na vida civil José Eduardo Martins Cardozo e disparou direto das sombras o seguinte petardo, em entrevista à Folha: “É uma situação que exigia dele, no mínimo, uma quarentena ética. Não é ilegal, porque não existe uma situação legal, mas deveria ter uma quarentena ética. Alguém que influencia o processo eleitoral tem que se considerar impedido de assumir cargos de livre nomeação de um governo que foi eleito a partir de decisões que ele tomou. Isso é questão de moralidade, questão de ética.”

Há apenas dois anos e meio, o referido causídico da causa perdida assomou às luzes da ribalta, como um Chaplin de circo, na condição de advogado particular da acima citada Dilma no processo do impeachment, recebendo, para isso, vencimentos pagos pela distinta plateia. Ademais, antes de ocupar qualquer magistério de ética, Sua Ex-Excelência deveria, em primeiro lugar, explicar ao público furtado por que sequer lamentou ou pediu perdão pela cumplicidade exercida durante os 13 anos e meio em que seus patrões de partido executaram o maior assalto da História. Em vez disso, faz parte da patota que joga areia nos olhos dos ocupantes do poleiro do circo mambembe da velha política republicana tupiniquim da justificativa mentirosa da perseguição ao chefe do chamado “quadrilhão do PT”, ora em julgamento em Brasília. À falta de sabão, ele está convidado a lavar a língua com juá, como faziam os ancestrais de seu ídolo e padim no interior de Pernambuco.

Dou-lhes um piedoso aviso: “calma, que o Brasil é nosso”. Estamos todos no mesmo barco e um eventual naufrágio a ninguém poupará.

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