A turma que apostou na teoria do “risco democrático”, agora, está com um problema: a internet. A internet é uma máquina de não esquecimento. Está tudo lá, registrado. Milhares de artigos, entrevistas, manifestos e “alertas” afirmando que a democracia iria ser destruída, de um modo ou outro, caso Bolsonaro ganhasse as eleições.
Pois bem. Ele ganhou, e agora o tempo está correndo.
Se a democracia de fato soçobrar, no Brasil, logo saberemos. Em um ou dois anos teremos já uma boa imagem do que ocorrerá com nossas instituições. Caso nossos ilustres acadêmicos estiverem certos, nos tornaremos uma nova Venezuela ou alguma variação próxima.
O catálogo de grandes alertas é inesgotável. Agora é “civilização contra a barbárie”, diz Wagner Moura, com um olhar que só ele saberia fazer. Do exterior, a imaginação flutuou nas estrelas. Leio de um professor americano que andou por aqui como uma espécie de Roger Waters da ciência política, durante as eleições, que Bolsonaro irá mover uma guerra às facções criminosas do país, e quando a violência explodir suspenderá a Constituição e dará fim a nossa democracia.
Leio outro que nos convoca a resistir enquanto for tempo. Enquanto ainda dispusermos de algum espaço e antes que “nossas liberdades sejam retiradas” pelo novo presidente.
Não há nenhuma necessidade de discutirmos muito sobre a correção, ou não, da retórica catastrofista sobre o Brasil. Basta esperar. Estamos diante de uma espécie de experimento natural. Se o grande alerta estiver errado e nossa democracia sobreviver ao inominável monstro de Glicério (cidade natal do novo presidente), tenho convicção de nossos bons intelectuais farão uma discreta e silenciosa autocrítica.
Não será preciso nenhum texto ou declaração pública (eles não o fariam, de qualquer maneira), nem mesmo um post, nas redes sociais.
Sugiro apenas um brinde solitário em homenagem a nossa democracia e a nossas instituições, que julgaram tão mal. E quem sabe algum arrependimento pelo pecadinho tão impróprio a um acadêmico: ceder à tentação da militância.
Ou pior: dar trela e transformar em tese acadêmica aquilo que não passava, no fim das contas, de retórica de campanha de um partido político.
Não vale, neste debate, fazer uma confusão bastante elementar: caso a catástrofe não aconteça, sair pela tangente sugerindo que a democracia não terminou, mas que passamos por um retrocesso democrático, por conta da agenda conservadora do governo Bolsonaro.
Vamos imaginar. O Congresso aprova, a partir de uma proposta apoiada pelo governo, a redução da maioridade penal para 17 anos. O projeto alcança 308 votos na Câmara e 49, no Senado, em dois turnos.
Haveria algum problema democrático em uma decisão como esta? De minha parte, sou contra a redução da maioridade penal, o que é irrelevante. O aspecto relevante é: foi eleito um presidente com esta proposta, explicitamente defendida por anos a fio. Ato seguinte, ela recebe apoio do governo e é aprovada pelo Congresso.
Sua aprovação será, portanto, um resultado da nossa democracia, ainda que possa desagradar uma imensa legião de brasileiros.
O mesmo raciocínio vale para os demais itens da pauta conservadora, como a (ainda vaga) ideia de flexibilizar o estatuto do desarmamento. Tudo por uma simples razão: a democracia não se decide pelo que eu, você, um punhado de intelectuais, ou o maracanã lotado de gente movida pelas melhores intenções achamos que é certo fazer.
A democracia, como não se cansava de repetir Norberto Bobbio, é o império das regras do jogo. É um sistema feito de freios e contrapesos, equilíbrio entre poderes e respeito à Constituição. Respeitadas as regras do jogo, nada diz sobre a qualidade da democracia se os seus resultados, isto é, se as decisões tomadas pelos cidadãos (nas eleições), pelo parlamento, sob a vigilância da Suprema Corte, forem consideradas por alguns como progressistas ou conservadoras.
O que me espantou, nesta eleição, mais uma vez, é o mais completo desprezo que boa parte do mundo intelectual tem pela simples ideia do pluralismo e da tolerância como uma modo de ser que é próprio da democracia.
Mais de 55 milhões de pessoas votam em um candidato, mas no dia seguinte isto é tomado como a mera expressão de um erro, tragédia, piada ou, como escutei de um bom amigo e intelectual, de uma campanha que não passou de “estridência ideológica vazia”.
O novo governo já começa a enfrentar os problemas do mundo real da política, a necessidade de votos para a reforma da Previdência, a pauta da autonomia do Banco Central, no Congresso, a composição do ministério e formação da base partidária.
O curso da política de carne e osso segue, a ritmo acelerado, enquanto uma estranha parte da sociedade parece não ter percebido que a campanha eleitoral terminou, que a democracia fez valer sua voz, e as instituições, talvez para desgosto de muitos, cumpriram exemplarmente o seu papel. Fernando Schüler
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