domingo, 9 de setembro de 2018

A solidão do meteorito

Há imagens que se tornam símbolos de uma época. Por exemplo, a Pedra do Bendegó, sólida e negra como uma acusação, emergindo por entre as cinzas tristes do Palácio de São Cristóvão.

Penso na longa viagem que o meteorito fez até chegar ali — cinco toneladas de ferro e níquel navegando entre as estrelas, afundando-se no sertão baiano, sendo resgatado e exposto (uma saga essa operação de resgate, daria um romance) —, enquanto lembro os versos da poeta norte-americana Muriel Rukeyser: “O Tempo entra./ Diz:/ o universo é feito de histórias,/ não de átomos.”

O que desapareceu para sempre enquanto o Museu Nacional ardia não foram átomos, não foram artefatos, não foram múmias antiquíssimas, preciosas coleções de lepidópteros, vozes e canções em línguas que nem existem mais: foram histórias. As histórias de que somos feitos.



Lembramos — por isso existimos. Sempre que algo da nossa memória individual ou coletiva se perde, perde-se uma parte de nós. Estamos sempre à beira da extinção. Somos uma espécie ameaçada e somos também a nossa pior ameaça.

Com a destruição do Museu Nacional é como se o Brasil tivesse sofrido um grave acidente vascular cerebral, não socorrido a tempo. Nesse processo, o Brasil perdeu parte da memória. O problema de perder parte da memória é que não sabemos ao certo o que perdemos. Um homem perde um braço num acidente; sabe que perdeu o braço. Mas como saberá, ao despertar no hospital, após um AVC, que perdeu a primeira gargalhada do seu filho? O aroma a goiabas do quintal da sua infância? A noite mais bela da sua vida?

O Brasil perdeu parte da memória; portanto, nem sequer sabe ao certo o que perdeu.

Os políticos, os poderes públicos, tendem a desprezar a cultura — ouço dizer. Acontece que os políticos, ao menos em contexto democrático, desprezam a cultura porque quem os escolhe despreza a cultura.

E por que tanta gente despreza a cultura?

Não me parece justo acusar políticos que, sinceramente, autenticamente, no fundo da sua alma minúscula e deserta, não compreendem que seja mais importante para o Estado gastar dinheiro a proteger museus e outras instituições culturais do que a lavar os carros dos deputados, ministros e senadores.

A falha é nossa, daqueles que agora choram o desaparecimento do Museu Nacional. Todos intuímos a extensão da perda. Todos sabemos que cultura é fundamental. Contudo, não temos sido capazes de defender as causas que nos parecem urgentes e óbvias. Falha grave, falha nossa. Temos errado por arrogância, por preguiça e por desleixo.

Não é possível recuperar o Museu Nacional, a não ser em parte. Mas podemos lutar pela preservação de outros territórios de memória igualmente ameaçados. Podemos e devemos lutar, cada um à sua maneira, para que a cultura e a memória não continuem a ser entendidas, por tantos, como um luxo dispensável.

Por mim, mesmo reconstruído o Palácio de São Cristóvão, deixaria a Pedra de Bendegó lá, na mesma sala em ruínas onde está agora, erguida entre as pesadas cinzas da memória que se foi, como um dedo acusador contra todos nós.
José Eduardo Agualusa 

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