sexta-feira, 15 de junho de 2018

Nós e o que fazemos conosco 62,5 mil vezes

Às vezes, fechamos os olhos para não ver, esquecendo que assim tudo pode ficar ainda mais nítido. A política, território civilizacional para a sociedade encaminhar suas demandas, está sendo abolida: ou a coisa acaba na polícia, que destruiu o centro moderado e insinuantemente liberal, ou a coisa acaba nos extremos. Tanto a polícia como os extremos desprezam o diálogo, o encontro de antagonismos, a conciliação do possível; nuances definitivas e reflexão se perdem. Tudo bem se a polícia e os extremos não quisessem governar, mas eles querem, já o fazem e, em outubro, receio eu, passarão a fazê-lo formal e conjuntamente. Com a ameaça de piorar tudo representada no locaute do patronato caminhoneiro, torci para que líderes ─ inexistentes, reafirmou-se, pois todos que poderiam ser chamados assim se acovardaram e, em vez de agirem como líderes formando uma opinião, acompanharam a opinião formada ─ suspendessem clivagens políticas, ideológicas e eleitorais e levassem a nação (que, no apoio àquela paralisação, pareceu com a galinha favorável à canja) a emergir de si mesma saindo da bruma que a separa da realidade para que, então, protegêssemos a fundamental recuperação dos últimos dois anos depois dos 14 que cavaram nossa cova. Não se tratava do governo, mas de nós e o que faríamos conosco: o governo acabaria em 7 meses. Nosso voluntariado para a ruína prevaleceu, os dois anos desaconteceram em 10 dias e retomamos a cavação que parece realizar nosso destino como nação.


Nesta semana, foram divulgados números da nossa matança cotidiana, o que me fez pensar em outra situação que depende de um pacto nacional, uma trégua para os brasileiros se reconhecerem como uma nação: a vida, predada no país dos 62,5 mil assassinatos anuais. Num estado pobre como Sergipe, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes é de 64,7, informa o Mapa da Violência. A Organização Mundial da Saúde estabelece como limite entre civilização e barbárie a taxa de 10 homicídios por 100 mil habitantes. Em outro estado pobre, o Piauí, ela é de 21,8. Não é só o fato de se matar quase o triplo de um estado pobre para outro, demais dados também demonstram que a pobreza não é determinante para a violência, embora a influencie. No governo Lula, o Brasil cresceu (em 2010, alcançou 7,5% de crescimento), mas a criminalidade não regrediu; no Nordeste, região que cresceu mais na média, ela aumentou.

Tais níveis de crescimento e a alta popularidade deram a Lula as condições perfeitas para ampliar as reformas iniciadas pelo antecessor e continuar a modernização do país com reformas. Preferiu rejeitar o Brasil concreto, não quis saber do batente real de um presidente. Não depois de sonhar 30 anos consigo mesmo refestelado nos salões do poder, languidamente sedado pelo single malt, recostado com o cinto afrouxado, recitando palavrões na liturgia do que entende ser presidente. Viagens, Rose Noronha, bajulação, jatinhos exclusivos, agrados milionários de empreiteiros ─ isso é que é vidão de presidente. Ora, sempre fora vadio sem nada disso, então ia, agora com a chave do cofrão público, se aporrinhar com reforma política ou tributária? Modernização da infraestrutura? Melhora da educação, da saúde ou da segurança? Preferiu abrir os olhos para um brasil imaginário, fazer jorrar o petrolão e erigir uma fraude para sucedê-lo no sucateamento do botequim cafajeste que instalou onde havia um país. Nossa grana foi roubada, claro, mas foram a negligência e o complexo faraônico de Lula e a incompetência convicta de Dilma que impediram a implementação de políticas públicas eficazes em setores-chaves como educação, segurança, saúde e infraestrutura. O assalto ao futuro dos nossos filhos ou netos supera a rapina no cofrão.

Um exemplo dramático da falta de relação direta entre crescimento econômico e diminuição da criminalidade se ausentes ações específicas contra a bandidagem é o Rio Grande do Norte, cuja taxa de 14,9 assassinatos por 100 mil habitantes, em 2006, pulou para 53,4 em 2016. No período, nenhum estado do Nordeste conseguiu diminuir seus números macabros. Então, penso no estado de São Paulo que, comandado por Serra e Alckmin, reduziu, entre 2006 e 2016, à metade a taxa de homicídios por 100 mil habitantes: era 20,4 e chegou a 10,9. O país em luto diário deveria compreender o caso paulista; em vez disso, o que se vê é a repetição de uma mentira asquerosa ─ a explicação para redução estaria num pacto entre Alckmin e o PCC ─ e a tradução de um aspecto positivo em negativo ─ a PM paulista prende demais (juro que me escapa o que propõe quem diz uma coisa dessas). Nasci em Pernambuco (taxa de 47,3) e adoro São Paulo para onde vim ainda bebê, costumo dizer que a capital ─ “áspero colosso”, na imagem definitiva de Augusto Nunes ─ é minha cidade natal onde não nasci, mas não estou afirmando que aqui é o paraíso ou que seu exemplo deve ser replicado sem o exame de erros e acertos, apenas constato: São Paulo é o estado brasileiro onde se mata menos; se a taxa nacional fosse igual à paulista, os homicídios no país seriam pouco mais de 20 mil, não 62,5 mil. Há de haver algo bom aí.

O que importa é a vida. O debate, me parece, afastou-se disso de tal forma que o exemplo de São Paulo é renegado por clivagens eleitorais, políticas e ideológicas. Ela, a vida, está submetida a isso no Brasil ensanguentado. Menos primitivos fôssemos, fecharíamos os olhos para essas diferenças e veríamos o que estamos fazendo conosco. O sucesso de São Paulo merece um estudo e deveria inspirar figuras públicas decentes e a sociedade a deixarem de lado diferenças de qualquer tipo, numa trégua para recolhermos os abatidos no campo de batalha chamado cotidiano. As pessoas morrem quando são assassinadas e, quando morrem, elas ficam mortas: a obviedade está acontecendo 62,5 mil vezes e não parecem suficientes nem o fato de ser óbvia nem a repetição para que, neste país enlutado, vejamos o que estamos fazendo dele. Podemos ─ e devemos ─ discutir o que leva Sergipe a encabeçar a barbárie e o que faz São Paulo apresentar uma taxa civilizada. Reconhecer essa necessidade e esse direito irrenunciáveis é conciliar-se com a realidade que se impõe: estamos deixando de ser uma nação para sermos um amontoado de bandos embrutecidos com suas opiniõezinhas e raivinhas que, separados nessas diferenças detestáveis quando sobrepostas à vida, encontram-se 62,5 mil vezes no mesmo luto.

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