quarta-feira, 6 de setembro de 2017

A lei não é para todos

A Operação Lava Jato, mesmo com todas as falhas e abusos cometidos, assim como a vaidade descontrolada de parte de seus protagonistas, presta um grande serviço ao Brasil ao revelar a relação de corrupção entre o público e o privado. Uma relação que atravessa vários governos e vários partidos e vários políticos de vários partidos. E a Operação Lava Jato presta também um grande desserviço ao Brasil ao reforçar uma das ideias mais perigosas, entranhadas no senso comum dos brasileiros, e realizada no concreto da vida do país: a de que prisão é sinônimo de justiça. Num país em que o encarceramento dos pobres e dos negros tornou-se uma política de Estado não escrita – e, paradoxalmente, acentuou-se nos governos democráticos que vieram depois da ditadura civil-militar (1964-1985), reforçar essa ideologia não é um detalhe. Tampouco um efeito colateral. É uma construção de futuro.

Resultado de imagem para lei não é para todos  charge

A Lava Jato tem um grande impacto sobre a vida do país, que ecoará por muito tempo e, em alguns aspectos, será constituinte do Brasil dos próximos anos ou décadas. É por essa razão que me parece fundamental enfrentar as complexidades e as contradições desse processo para além do contra ou a favor. O que busco fazer neste espaço é tentar interpretar os sentidos que vão sendo construídos ou reforçados pela Lava Jato, o que anda pelas bordas dessa operação, mas não por isso é menos importante. E que talvez seja mais permanente.

escrevi  que o fato de a grande “purgação” nacional se dar por crimes contra o patrimônio e não por crimes contra a vida tem o efeito profundo de reforçar uma deformação: a de que a vida humana vale pouco, o que importa é o patrimônio. Essa deformação é constitutiva da formação do Brasil como nação e, nos anos recentes, foi enormemente reforçada com a fundação de uma democracia que escolheu deixar impunes os torturadores e assassinos da ditadura civil-militar. Com a Lava Jato, esse traço constitutivo do Brasil se tornou ainda mais cimentado. E as consequências não são nem serão pequenas.

Prisão como sinônimo de justiça é outra ideologia que está sendo reforçada pela Lava Jato. Assim como o pouco valor dado à vida, ela também é antiga e entranhada no imaginário nacional. Mas cresceu e se ampliou com a disseminação em programas policiais/sensacionalistas de TV que não só pedem a prisão, mas também a execução de “bandidos”, em geral negros e pobres, como solução para o aumento da violência. Com a Lava Jato, essa ideologia foi ainda mais reforçada. Ao atingir os que nunca eram presos, os ricos, os poderosos, os políticos... a interpretação de prisão como justiça alcançou um outro patamar. Afinal, estes eram os “acima da lei”. E com a Lava Jato foram alcançados.

Os operadores da Lava Jato compreenderam bem o anseio popular e o usaram a seu favor, produzindo imagens amplamente disseminadas pelas TVs e pela internet de empresários e principalmente de políticos algemados e humilhados. Sem contar a “condução coercitiva” de Lula, que, da forma como foi feita, de imediato foi interpretada como “prisão”. Este espetáculo foi estratégico para o apoio da população à Lava Jato. Mas não só reforçou a interpretação de que a única forma de fazer justiça é prender, como açulou algo muito grave e também constitutivo do Brasil: confundir justiça com vingança. As imagens produzidas pelos operadores da Lava Jato e replicada milhões de vezes na TV e na internet não serviram para a ideia da justiça, mas para a ideia da vingança. Foram imagens produzidas para o gozo da população. E esta é uma escolha política.

Diante de cada notícia, e elas se acumulam a cada dia, as palavras favoritas são: “Finalmente prenderam!”. Ou: “Por que ainda não está preso?”. Ou ainda: “Tem que prender!”.

Nesta construção ideológica, a Lava Jato tem o efeito de produzir uma ideia de que, agora, a justiça é para todos. Ou a prisão é para todos, já que justiça e prisão são usadas como sinônimos. Num dos países mais desiguais do mundo, atinge-se pelo menos uma igualdade: a de que todos podem – e são – presos. Esta ideia, porém, não é apenas manipuladora. Ela é comprovadamente falsa. E ela serve para mascarar a enorme desigualdade do Brasil. Também na justiça. E também na prisão.


Se o encarceramento em massa fosse solução para a violência, no Brasil se dormiria de porta aberta

Se o encarceramento em massa fosse solução para a violência, no Brasil se dormiria de porta aberta. Com mais de 650 mil presos – e crescendo – temos a terceira maior população carcerária do mundo. O Brasil só perde, por enquanto, para os Estados Unidos e para a China. A maioria dos presos é composta por pessoas negras, pobres e com pouca escolaridade. Esta população ocupa menos de 394 mil vagas. O que significa que, com uma taxa de ocupação de 163,9%, estão não apenas presos, mas amontoados.

A maioria dos presos é composta por homens jovens, o que significa que está se encarcerando a juventude do Brasil. Menos de 10% deles concluíram o ensino médio. Uma pesquisa de 2014 mostra que a taxa de mortes por assassinato nas prisões brasileiras é três vezes maior do que na população geral – e isso sem contar Rio e São Paulo, que não informaram seus números. Os dados demonstram que quem mais morre assassinado no Brasil são as pessoas presas, sob responsabilidade do Estado.

A política de encarceramento dos jovens pobres e negros e com pouca escolaridade se revela também uma política de extermínio. E o Estado não é responsabilizado pelo genocídio cometido. Apenas nos primeiros 14 dias do mês de janeiro deste ano 115 presos morreram assassinados em três penitenciárias do Brasil. Uma tinha quase três vezes mais presos do que o número de vagas, outra duas vezes mais e outra quase o dobro. Podemos afirmar que os presos do sistema carcerário brasileiro estão entre os grupos que sofrem mais ilegalidades. E seguidamente isso resulta em sua morte. E assim o país perde parte de sua juventude e de sua força de trabalho.

No Brasil, a ideia de que “bandido bom é bandido morto” é muito popular, embora a pena de morte não exista oficialmente no país. Mas “bandido” é uma palavra ampla demais. E que esconde coisas demais. A maioria dos presos praticou crimes contra o patrimônio e relacionados a drogas. Os que cometeram crimes contra a vida são uma minoria. Apenas na cidade do Rio de Janeiro, de 1.330 acusados por tráfico em 2013, 80,6% eram réus primários. Em São Paulo, outra pesquisa analisou os flagrantes por tráfico de drogas, mostrando que quase 60% das pessoas não tinham antecedentes criminais e apenas 3% portavam algum tipo de arma. A média apreendida era de 66,5 gramas de droga. Mas apenas 9% foram absolvidas ou responderam por porte. O restante teve penas de até cinco anos de prisão por tráfico.

É possível afirmar que as superlotadas e perigosas prisões brasileiras estão abarrotadas de pessoas sem antecedentes criminais, que não deveriam estar lá porque a prisão deveria ser a última medida, reservada para os crimes mais graves. Quando se coloca uma pessoa que cometeu homicídios dolosos (com intenção de matar) ou latrocínios (matar para roubar) e uma pessoa que carregava alguns gramas de maconha no bolso não só no mesmo lugar concreto – a prisão – como também no mesmo lugar simbólico, o de “bandido”, o crime é da sociedade contra a pessoa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário