sábado, 9 de janeiro de 2016

O sistema constitucional e o presidencialismo de coalizão

O impasse em que meteram o Brasil – em grave crise institucional, desdobrando-se em dois impasses, um na gestão macroeconômica, outro no jogo político-partidário – não se resolve com a atual estrutura constitucional da nação e com as lideranças políticas que pululam, fervilhando as bases da paz pela qual a população tanto clama. O perigoso desarranjo das instituições fundamentais é infenso a uma operação feita por constituinte de segundo grau. As chamadas “cláusulas pétreas”, ou melhor, irreformáveis, introduzidas expressa e implicitamente pela Carta Magna, magnificam a rigidez constitucional, que praticamente transforma o texto maior em um emaranhado de cláusulas e emendas insuscetíveis de profundo rearranjo, tal qual aconteceu na França em 1958. Ingovernável esta tanto na monarquia como após a revolução, mesmo recheada de inúmeras constituições no curso dos séculos XIX e XX, só encontrou sossego quando foram buscar, em seu refúgio de Colombey-les-Deux-Églises, um dos maiores estadistas dos tempos modernos, tanto na paz quanto na guerra, e que precisou não raro usar mão de ferro para honrar a longa história do seu povo.

Decerto, falo do general Charles de Gaulle. A velha Gália tinha a quem recorrer nas horas tempestuosas. O líder incontestável, o herói nacional, estava pronto para lutar quando a pátria perigava pela ação dos quinta-colunas. Recusou qualquer tipo de diálogo com a República de Vichy, com Pétain, outrora um militar destemido, depois um títere de Hitler, com Pierre Laval, o traidor maldito. Refugiou-se na Inglaterra, onde exerceu famosa ação contra o invasor. Por meio do rádio, falava a seu povo e o incitava a resistir que o dia estava próximo para aquele homem que só conhecia as manifestações da coragem e prelibava o dia em que, comandando suas tropas, desceria, glorioso, pelas pedras do calçamento da belíssima Avenue des Champs-Élysées e expulsaria, derrotadas, as forças do temível invasor, que tanto mal fizera aos seus compatriotas e a sua pátria.

Era uma criança à época, mas meu pai, que era francófilo, ouvia as transmissões radiofônicas todas as noites, e eu, ao seu lado, sofria com a torcida. Ocorre, entretanto, que não temos entre nós um chefe de Estado e de governo, pronto e acabado, para, nesta quadra tão intensamente grave da vida nacional, exercer, com autoridade e respeito, a missão entregue, com grande êxito e sabedoria, ao notável militar e político gaulês.

O Brasil não pode esquecer, nunca, daquele entardecer sombrio e de péssimos presságios, o da véspera da posse de Tancredo Neves. O destino o abateu e a toda a nação do infortúnio sofrido pelo saudoso homem público. O coronel do Maranhão fez ou deixou de fazer estritamente o que não devia. Começou com o medo e consequente impossibilidade de submeter ao Congresso Nacional um projeto de Constituição para ser discutido e votado. Esse texto, imaginariamente concebido, acompanharia a tradição firmada no Brasil nas ocasiões em que o país decidira constitucionalizar-se, exceto com Vargas, Castello Branco e Sarney. Este escondeu-se atrás das colunas niemeyerianas e, como deve ser do seu feitio, bebericando gostosamente e pensando num município perdido no interior do seu Estado, foi a própria omissão. Por que não renunciou, se essa seria a sua maior e primeira responsabilidade a cumprir, mesmo sem a legitimidade do mandato? Poder ilegítimo é poder sem dignidade, é usurpação.

O horizonte não me sugere, no tempo que aqui me resta, qualquer sonho de constituinte.

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