terça-feira, 25 de agosto de 2015

O pântano enganoso das bocas

Em abril de 1964, o poeta Thiago de Mello, reagindo à ditadura que se implantava, redigiu ‘Os Estatutos do Homem’. Num dos versos, ele alerta para o perigo das palavras, que muitas vezes não comunicam a realidade. Mais de meio século depois, a verdade continua maltratada na cena pública.

O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, diante de sindicalistas arrebanhados pelo deputado Paulo Pereira (SDD/SP), disse: “a palavra renúncia não consta do meu dicionário”. De fato, de acordo com a robusta denúncia do Ministério Público Federal, ele não renunciou ao “recebimento de vantagens indevidas (propinas)” e à “participação em esquemas ilícitos na Petrobras”. No “Aurélio” de Cunha também não consta, diz ele, a palavra “covardia”. Aqui há controvérsias: dedicados servidores de carreira da Câmara foram sumariamente afastados de funções de direção – nos Transportes, Engenharia e Informática – quando ousaram comunicar algo que desagradou ou desmentiu o chefe eventual...

A turma do PT embaraçada com a Lava Jato, por seu atônito lado, tem um mantra, repetido à exaustão quando é confrontada com o recebimento de polpudos recursos de empreiteiras: “tudo foi devidamente declarado à Justiça Eleitoral como doação de campanha”.

A palavra pode ser dita e tornar-se o contrário do que significa. Ou não explicar nada. Ou ainda agredir os fatos. Nos Parlamentos – onde se parla e legisla – o desprezo pela palavra sincera é imenso. Reinam a demagogia e a hipocrisia.

Nem alguns pregadores da Palavra de Deus se salvam. Ao louvar o “irmão em Cristo” Cunha como o “terceiro homem mais importante da República”, o pastor Abner Ferreira garantiu que “Satanás teve que recolher cada uma das ferramentas contra nós”. Enquanto isso, em certas contas ‘abençoadas’ entram recursos suspeitos, como as investigações revelam. O Deus-dinheiro é cultuado.

Na Lava Jato, a regra dos acusados – ao menos até assumirem a colaboração premiada – é negar os fatos. Alguns se esmeram em criar versões falsas, ditas com a maior convicção. 

O mundo da política é cheio de eufemismos e evasivas. Que os agentes públicos, ao menos, sejam mais verazes, menos despudorados em mentir, pois esse degradado dom de iludir é cada vez mais repudiado pela consciência popular.

Ela nos faz acreditar na profecia do Artigo 5 do “Ato Institucional Permanente” do poeta amazônida: “o homem se sentará à mesa com seu olhar limpo, porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa”. Isso eu não vou ver, mas assim há de ser!

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