A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursosSérgio Buarque de Holanda, "Raízes do Brasil"
quarta-feira, 31 de agosto de 2022
Mal-entendido
Pontos fora da curva
A vasta literatura sobre os problemas crônicos e estruturais do nosso sistema educacional – entre os quais a baixa qualidade do ensino – findou por ter um efeito colateral. Nunca foi seu objetivo mas, involuntariamente, contribuiu para disseminar o senso comum de que a educação brasileira é um cenário de terra arrasada.
A leitura exageradamente pessimista disseminou a ideia de que a única maneira de pôr a educação brasileira nos eixos seria por meio de uma “revolução”, ou seja, uma ruptura com tudo o que tem sido feito. Desprezando assim o enorme esforço nacional das últimas três décadas, responsáveis por avanços significativos no ensino básico.
O livro “Pontos fora da curva” (FGV Editora, 2022) de Olavo Nogueira Filho, diretor executivo do Todos pela Educação, quebra esse paradigma. Em vez de focar no que não tem sido feito, foca no que já foi feito. O ponto de partida de sua análise foram as experiências exitosas do Programa de Alfabetização na Idade Certa do Ceará e do Ensino Médio Integral de Pernambuco. A escolha desses dois programas se deu pelo fato deles serem emblemáticos do ingresso da educação brasileira na chamada terceira geração das reformas estruturais.
Reformas como essas são o que há hoje de mais avançado no mundo em matéria educacional. Foram iniciadas nos países desenvolvidos na primeira década do século XXI e também são chamadas de “reformas efetivas”, por combinarem qualidade com equidade, cumprindo os objetivos de acesso à escola, permanência e aprendizagem.
Ceará e Pernambuco deram saltos significativos no Ideb (Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico), graças aos seus programas. Mas o dado alvissareiro é o fato de já não serem mais “pontos fora da curva”. O sucesso do Ceará estimulou mais doze estados a implantarem a alfabetização na idade certa, entre os quais São Paulo. Isso foi decisivo para o Estado liderar o ranking do Ideb, nos 5º e 9º anos das escolas públicas do ensino fundamental. A experiência pioneira de ensino integral de Pernambuco também ganhou tração em estados com redes de ensino médio com grandes complexidades, como são os casos de São Paulo e Minas Gerais.
A análise de Olavo Nogueira é uma enorme contribuição para o resgate do quanto já foi feito no terreno educacional. Em vez de – como afirmou o pesquisador Fernando Abrucio, da FGV, na apresentação do livro -, estimular o complexo de vira-lata em termos educacionais, demonstra que nunca houve tantas mudanças positivas na educação brasileira como no período de 1988 a 2018. Nesses trinta anos, o Brasil universalizou o ensino fundamental, expandiu o número de concluintes do ensino médio, expandiu, de forma inédita, o ensino infantil.
Além disso, “houve muito financiamento com o FUNDEF e o FUNDEB, ampliação e descentralização municipalista para captar os alunos que as redes estaduais não alcançavam, criação de modelos de avaliação dos resultados educacionais, maior qualificação de professores e a construção de carreiras docentes profissionalizadas. E o surgimento de inovações nas políticas educacionais subnacionais”.
A Constituição de 1988 foi fundamental para tais avanços ao definir a educação como um direito. Mas, em especial, o livro valoriza os anos 90 como uma década virtuosa em matéria de reformas educacionais.
No espaço curto de dez anos foram implementadas a primeira e a segunda geração de reformas.
A primeira construiu os pilares para o ensino de massas, praticamente deixando para trás a exclusão das crianças entre 4 e 17 anos. Inicia também um movimento de fortes investimentos na educação, propiciando a ampliação física da rede pública com construção de escolas para absorver o novo contingente de alunos e possibilita melhoria salarial dos professores.
Tais saltos permitiram ao Brasil ingressar, ainda nos anos 90, na segunda geração de reformas, com a definição dos parâmetros curriculares nacional e, principalmente, a criação de um robusto sistema de avaliação da aprendizagem em larga escala, o SAEB. O grande mérito da década seguinte foi dar continuidade a tais avanços e até ampliá-los, como aconteceu com o sucedâneo do Fundef: o Fundeb.
Para o autor, essa trajetória ficou paralisada no período 2010-2016, em decorrência da alta rotatividade no MEC. Foram sete ministros da Educação em seis anos. Isso explica, em grande medida, o atraso do Brasil em relação aos países desenvolvidos na implementação das reformas de terceira geração. O ímpeto reformista foi retomado em 2017/2018, com a definição da Base Nacional Comum Curricular, da Reforma do Ensino Médio e com a aprovação da Emenda Constitucional que tornou o Fundeb permanente.
As reformas nas suas três gerações devem ser vistas como parte de um processo longo e contínuo, implementadas não por meio de rupturas radicais, mas de forma incremental. Se sua segunda onda pode ser definida como a reformas “hard”, as da terceira geração devem ser entendidas “soft”. Na realidade do ensino básico brasileiro, no qual existem 140 mil escolas públicas, ganham protagonismo os governos subnacionais, especialmente na última onda das reformas.
A terceira onda foca mais no como fazer, priorizando a colaboração das escolas, secretarias, qualificação de professores e diretores e no aprimoramento da relação entre formulação e implementação. Não há uma reforma mágica, uma bala de prata da Educação. Para lograr êxito, as reformas devem ter medidas articuladas dentro de uma visão sistêmica. A experiência concreta do Ceará e Pernambuco mostram que seu sucesso decorre muito do fato de serem efetivadas por meio de uma descentralização coordenada.
A história da educação brasileira não é constituída só pelos últimos trinta anos. Há uma herança pesada de quase dois séculos que cobra seu preço e incide sobre os tempos atuais. Mas reduzi-la a um desastre completo, como se não tivéssemos nada a aprender com a experiência, é um grande equívoco. Talvez a grande contribuição do livro “Pontos fora da curva” seja a desconstrução desse mito. Felizmente, há muitos pontos fora da curva, merecedores de serem comemorados.
A leitura exageradamente pessimista disseminou a ideia de que a única maneira de pôr a educação brasileira nos eixos seria por meio de uma “revolução”, ou seja, uma ruptura com tudo o que tem sido feito. Desprezando assim o enorme esforço nacional das últimas três décadas, responsáveis por avanços significativos no ensino básico.
O livro “Pontos fora da curva” (FGV Editora, 2022) de Olavo Nogueira Filho, diretor executivo do Todos pela Educação, quebra esse paradigma. Em vez de focar no que não tem sido feito, foca no que já foi feito. O ponto de partida de sua análise foram as experiências exitosas do Programa de Alfabetização na Idade Certa do Ceará e do Ensino Médio Integral de Pernambuco. A escolha desses dois programas se deu pelo fato deles serem emblemáticos do ingresso da educação brasileira na chamada terceira geração das reformas estruturais.
Reformas como essas são o que há hoje de mais avançado no mundo em matéria educacional. Foram iniciadas nos países desenvolvidos na primeira década do século XXI e também são chamadas de “reformas efetivas”, por combinarem qualidade com equidade, cumprindo os objetivos de acesso à escola, permanência e aprendizagem.
Ceará e Pernambuco deram saltos significativos no Ideb (Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico), graças aos seus programas. Mas o dado alvissareiro é o fato de já não serem mais “pontos fora da curva”. O sucesso do Ceará estimulou mais doze estados a implantarem a alfabetização na idade certa, entre os quais São Paulo. Isso foi decisivo para o Estado liderar o ranking do Ideb, nos 5º e 9º anos das escolas públicas do ensino fundamental. A experiência pioneira de ensino integral de Pernambuco também ganhou tração em estados com redes de ensino médio com grandes complexidades, como são os casos de São Paulo e Minas Gerais.
A análise de Olavo Nogueira é uma enorme contribuição para o resgate do quanto já foi feito no terreno educacional. Em vez de – como afirmou o pesquisador Fernando Abrucio, da FGV, na apresentação do livro -, estimular o complexo de vira-lata em termos educacionais, demonstra que nunca houve tantas mudanças positivas na educação brasileira como no período de 1988 a 2018. Nesses trinta anos, o Brasil universalizou o ensino fundamental, expandiu o número de concluintes do ensino médio, expandiu, de forma inédita, o ensino infantil.
Além disso, “houve muito financiamento com o FUNDEF e o FUNDEB, ampliação e descentralização municipalista para captar os alunos que as redes estaduais não alcançavam, criação de modelos de avaliação dos resultados educacionais, maior qualificação de professores e a construção de carreiras docentes profissionalizadas. E o surgimento de inovações nas políticas educacionais subnacionais”.
A Constituição de 1988 foi fundamental para tais avanços ao definir a educação como um direito. Mas, em especial, o livro valoriza os anos 90 como uma década virtuosa em matéria de reformas educacionais.
No espaço curto de dez anos foram implementadas a primeira e a segunda geração de reformas.
A primeira construiu os pilares para o ensino de massas, praticamente deixando para trás a exclusão das crianças entre 4 e 17 anos. Inicia também um movimento de fortes investimentos na educação, propiciando a ampliação física da rede pública com construção de escolas para absorver o novo contingente de alunos e possibilita melhoria salarial dos professores.
Tais saltos permitiram ao Brasil ingressar, ainda nos anos 90, na segunda geração de reformas, com a definição dos parâmetros curriculares nacional e, principalmente, a criação de um robusto sistema de avaliação da aprendizagem em larga escala, o SAEB. O grande mérito da década seguinte foi dar continuidade a tais avanços e até ampliá-los, como aconteceu com o sucedâneo do Fundef: o Fundeb.
Para o autor, essa trajetória ficou paralisada no período 2010-2016, em decorrência da alta rotatividade no MEC. Foram sete ministros da Educação em seis anos. Isso explica, em grande medida, o atraso do Brasil em relação aos países desenvolvidos na implementação das reformas de terceira geração. O ímpeto reformista foi retomado em 2017/2018, com a definição da Base Nacional Comum Curricular, da Reforma do Ensino Médio e com a aprovação da Emenda Constitucional que tornou o Fundeb permanente.
As reformas nas suas três gerações devem ser vistas como parte de um processo longo e contínuo, implementadas não por meio de rupturas radicais, mas de forma incremental. Se sua segunda onda pode ser definida como a reformas “hard”, as da terceira geração devem ser entendidas “soft”. Na realidade do ensino básico brasileiro, no qual existem 140 mil escolas públicas, ganham protagonismo os governos subnacionais, especialmente na última onda das reformas.
A terceira onda foca mais no como fazer, priorizando a colaboração das escolas, secretarias, qualificação de professores e diretores e no aprimoramento da relação entre formulação e implementação. Não há uma reforma mágica, uma bala de prata da Educação. Para lograr êxito, as reformas devem ter medidas articuladas dentro de uma visão sistêmica. A experiência concreta do Ceará e Pernambuco mostram que seu sucesso decorre muito do fato de serem efetivadas por meio de uma descentralização coordenada.
A história da educação brasileira não é constituída só pelos últimos trinta anos. Há uma herança pesada de quase dois séculos que cobra seu preço e incide sobre os tempos atuais. Mas reduzi-la a um desastre completo, como se não tivéssemos nada a aprender com a experiência, é um grande equívoco. Talvez a grande contribuição do livro “Pontos fora da curva” seja a desconstrução desse mito. Felizmente, há muitos pontos fora da curva, merecedores de serem comemorados.
O general de passeata virou tuiteiro
Campanha eleitoral é tempo de candidato comer buchada de bode e abraçar crianças em comunidades pobres. Em 2022, ela se tornou também o momento em que general vira tuiteiro. A rede social é o novo Clube Militar, o local em que oficiais fazem política, como descobrira o ex-comandante Eduardo Villas Bôas.
Agora foi a vez de Walter Braga Netto. Desde segunda-feira, o lacônico oficial se converteu em um loquaz tuiteiro. O candidato a vice dos sonhos de Jair Bolsonaro, por não dar palpites nem ameaçá-lo, apresenta-se como um mineiro “alinhado aos valores conservadores e ao liberalismo econômico do presidente”. Na rede social, todos têm pressa – a concorrência é enorme para capturar o eleitor. O novo tuiteiro do Planalto já conta com 87 mil seguidores e 13 publicações. “Foi com muita honra e orgulho que recebi a missão de ser candidato a vice-presidente, a mais desafiadora e importante dos meus 65 anos de vida.”
Até então, o ex-ministro da Defesa era um dos generais de passeata do bolsonarismo, esse novo tipo da política nacional. Nos anos 1960, Nelson Rodrigues capturou a imagem do “padre de passeata”, que só olhava para os céus para saber se devia sair com guarda-chuva. O general de passeata é parecido: ele só olha para o alto para saber quando o “tempo vai fechar”.
Enquanto alimentava pastores mais preocupados em salvar o governo do que almas, a administração Bolsonaro criou esse novo personagem. São figuras como Eduardo Pazuello, o especialista em logística cujas desventuras Émile Zola tornou um clássico ao retratar, em La Débâcle, o exército francês de 1870.
Essa turma gosta de datas comemorativas, como o 31 de março. E crê que o 7 de Setembro em Copacabana reviverá, cem anos depois, a marcha dos 18 do Forte. Ela acredita que a salva de tiros, programada pelo Exército durante o comício de Bolsonaro, esconderá os maltrapilhos que emboscam clientes nas padarias do bairro, parte dos 33 milhões que vivem a fome da pobreza extrema no Brasil. Quase todos os candidatos à Presidência já anunciaram planos para acabar com essa chaga. Cada um tem um caminho. Bolsonaro também tem o seu: negar a existência dos esfomeados.
Seu vice tuitou ontem sua visita a Sinop (MT) e fez promessas ao agronegócio. “O Brasil contribui com a "segurança alimentar do mundo”, escreveu. Nenhuma palavra sobre a fome no País. Em uma campanha de 45 dias, um político tem pressa para se fazer conhecer. Os famélicos, como dizia o sociólogo Hebert de Souza, o Betinho, igualmente têm pressa. Quando uma barriga ronca, nada mais importa, além da própria fome. Os que se alimentam do poder também sabem disso.
Agora foi a vez de Walter Braga Netto. Desde segunda-feira, o lacônico oficial se converteu em um loquaz tuiteiro. O candidato a vice dos sonhos de Jair Bolsonaro, por não dar palpites nem ameaçá-lo, apresenta-se como um mineiro “alinhado aos valores conservadores e ao liberalismo econômico do presidente”. Na rede social, todos têm pressa – a concorrência é enorme para capturar o eleitor. O novo tuiteiro do Planalto já conta com 87 mil seguidores e 13 publicações. “Foi com muita honra e orgulho que recebi a missão de ser candidato a vice-presidente, a mais desafiadora e importante dos meus 65 anos de vida.”
Até então, o ex-ministro da Defesa era um dos generais de passeata do bolsonarismo, esse novo tipo da política nacional. Nos anos 1960, Nelson Rodrigues capturou a imagem do “padre de passeata”, que só olhava para os céus para saber se devia sair com guarda-chuva. O general de passeata é parecido: ele só olha para o alto para saber quando o “tempo vai fechar”.
Enquanto alimentava pastores mais preocupados em salvar o governo do que almas, a administração Bolsonaro criou esse novo personagem. São figuras como Eduardo Pazuello, o especialista em logística cujas desventuras Émile Zola tornou um clássico ao retratar, em La Débâcle, o exército francês de 1870.
Essa turma gosta de datas comemorativas, como o 31 de março. E crê que o 7 de Setembro em Copacabana reviverá, cem anos depois, a marcha dos 18 do Forte. Ela acredita que a salva de tiros, programada pelo Exército durante o comício de Bolsonaro, esconderá os maltrapilhos que emboscam clientes nas padarias do bairro, parte dos 33 milhões que vivem a fome da pobreza extrema no Brasil. Quase todos os candidatos à Presidência já anunciaram planos para acabar com essa chaga. Cada um tem um caminho. Bolsonaro também tem o seu: negar a existência dos esfomeados.
Seu vice tuitou ontem sua visita a Sinop (MT) e fez promessas ao agronegócio. “O Brasil contribui com a "segurança alimentar do mundo”, escreveu. Nenhuma palavra sobre a fome no País. Em uma campanha de 45 dias, um político tem pressa para se fazer conhecer. Os famélicos, como dizia o sociólogo Hebert de Souza, o Betinho, igualmente têm pressa. Quando uma barriga ronca, nada mais importa, além da própria fome. Os que se alimentam do poder também sabem disso.
Não há estrela no céu
Havia sido aprovado no concurso do Itamaraty para a carreira diplomática. Sonhara muito tempo com isso. Desejara começar a exercer a carreira na Alemanha. Era um país perfeito. Culto, de grandes artistas. Dera ao mundo homens como Bach, Mozart, Beethoven, Haendel, Goethe, Hesse, Thomas Mann, Rilke, Kant, Hegel. Foi nomeado como adjunto do Consulado do Brasil em Frankfurt.
Quando o avião aterrissou em solo alemão, sentiu pulsações boas no coração sonhador com o bem, a perfeição na vida. No entanto, sensações expectantes de que iria aprender muito com o mundo civilizado da Alemanha tiveram a primeira cena decepcionante quando viu no jardim a tabuleta avisando que ali estavam proibidas de brincar crianças não arianas.
No dia seguinte viu na rua um judeu de rosto apatetado, desfilando com o cartaz de papelão pendurado no pescoço. O cartaz dizia: SOU UM JUDEU PORCO. Jamais ia imaginar que encontraria cenas piores do que aquela contra o povo judeu. Naqueles idos de 1938, a Alemanha nazista agia como um povo selvagem, que vomitava ódio contra os judeus. Havia uma vontade inconcebível para espancar, humilhar, usurpar os bens conquistados por um povo com inteligência e trabalho.
Encontrou um grupo de jovens soldados nazistas querendo estuprar uma moça judia em plena luz do dia. Empurravam, davam tapas no seu rosto enquanto soltavam gargalhadas histéricas e tentavam espremê-la contra a parede. Interferiu. Falou alto: “Parem com isso! Sou o adjunto do Consulado Brasileiro!” O grupo largou a moça contrariado, melhor dizendo, revoltado com aquele brasileiro querendo defender uma judia, se metendo onde não lhe cabe.
Getúlio Vargas era o presidente do Brasil no Estado Novo. O ditador brasileiro namorava com as ideias nazistas de Hitler. Determinou que os diplomatas brasileiros não se metessem com os problemas internos da Alemanha. Não queria complicações. Reduzira o visto em passaportes de judeus que queriam sair da Alemanha e vir para o Brasil.
O mal prenunciava que o mundo estava prestes a ser abalado com a Segunda Guerra Mundial. Hitler estava mandando judeus de volta para a Polônia. Sua raiva cresceu, alardeava que iria invadir a Polônia, os judeus estavam roubando a Alemanha, eram os donos do comércio, das fábricas e estaleiros. Seu império com bases na inutilidade do amor estava prestes a ser instalado, a fera ressurgia da caverna para banir a pomba na légua, destruir a relva, só queria a selva.
Estarreceu o mundo a Noite dos Cristais quando lojas de judeus foram quebradas, os donos espancados, numa fúria do horror sem precedente. Sinagogas foram queimadas, a ordem era reduzir a cinzas os estabelecimentos comerciais, tudo o que havia sido adquirido pelos judeus com esforço nos dias.
Não era justo o que vinha assistindo, a selvageria assassinar a razão. Não se conformava com o que os olhos viam a todo momento quando saía na rua. Homens separados das mulheres, pais dos filhos, irmão do irmão. Eram levados para os campos de concentração como uma carga imprestável. Sujos, vestidos numa roupa fina para enfrentar o forte frio. Tossiam, o rosto ossudo, a pele amarelada. As marcas do desprezo e abandono nos olhos tristes, apagados de qualquer vestígio de luz. Entravam nos caminhões empurrados pelo cano do fuzil, os olhos já não tinham a lágrima, a inocência não tinha qualquer possibilidade para contradizer uma condenação sem sentido.
As noites mal dormidas, o pesadelo tomara conta dos sonhos alimentados no Brasil sob a expectativa de viver em paz com um mundo justo e civilizado. Até quando iria suportar conviver com uma raça que se dizia superiora, sustentada em sua natureza ariana com as botas de ferro de soldados impassíveis?
Depois que teve navios bombardeados na costa por submarinos alemães, o Brasil rompera as relações com a Alemanha nazista. Passou para o lado dos aliados, que tinham declarado guerra ao ditador de bigodinho nervoso, o que comandava passadas de ódio na matança de milhões indefesos por manadas desenfreadas.
No retorno, assim que desembarcou do avião, ao deixar a escada, a primeira coisa que fez foi se abaixar e dar um beijo no solo da pátria saudosa.
Quando o avião aterrissou em solo alemão, sentiu pulsações boas no coração sonhador com o bem, a perfeição na vida. No entanto, sensações expectantes de que iria aprender muito com o mundo civilizado da Alemanha tiveram a primeira cena decepcionante quando viu no jardim a tabuleta avisando que ali estavam proibidas de brincar crianças não arianas.
No dia seguinte viu na rua um judeu de rosto apatetado, desfilando com o cartaz de papelão pendurado no pescoço. O cartaz dizia: SOU UM JUDEU PORCO. Jamais ia imaginar que encontraria cenas piores do que aquela contra o povo judeu. Naqueles idos de 1938, a Alemanha nazista agia como um povo selvagem, que vomitava ódio contra os judeus. Havia uma vontade inconcebível para espancar, humilhar, usurpar os bens conquistados por um povo com inteligência e trabalho.
Encontrou um grupo de jovens soldados nazistas querendo estuprar uma moça judia em plena luz do dia. Empurravam, davam tapas no seu rosto enquanto soltavam gargalhadas histéricas e tentavam espremê-la contra a parede. Interferiu. Falou alto: “Parem com isso! Sou o adjunto do Consulado Brasileiro!” O grupo largou a moça contrariado, melhor dizendo, revoltado com aquele brasileiro querendo defender uma judia, se metendo onde não lhe cabe.
Getúlio Vargas era o presidente do Brasil no Estado Novo. O ditador brasileiro namorava com as ideias nazistas de Hitler. Determinou que os diplomatas brasileiros não se metessem com os problemas internos da Alemanha. Não queria complicações. Reduzira o visto em passaportes de judeus que queriam sair da Alemanha e vir para o Brasil.
O mal prenunciava que o mundo estava prestes a ser abalado com a Segunda Guerra Mundial. Hitler estava mandando judeus de volta para a Polônia. Sua raiva cresceu, alardeava que iria invadir a Polônia, os judeus estavam roubando a Alemanha, eram os donos do comércio, das fábricas e estaleiros. Seu império com bases na inutilidade do amor estava prestes a ser instalado, a fera ressurgia da caverna para banir a pomba na légua, destruir a relva, só queria a selva.
Estarreceu o mundo a Noite dos Cristais quando lojas de judeus foram quebradas, os donos espancados, numa fúria do horror sem precedente. Sinagogas foram queimadas, a ordem era reduzir a cinzas os estabelecimentos comerciais, tudo o que havia sido adquirido pelos judeus com esforço nos dias.
Não era justo o que vinha assistindo, a selvageria assassinar a razão. Não se conformava com o que os olhos viam a todo momento quando saía na rua. Homens separados das mulheres, pais dos filhos, irmão do irmão. Eram levados para os campos de concentração como uma carga imprestável. Sujos, vestidos numa roupa fina para enfrentar o forte frio. Tossiam, o rosto ossudo, a pele amarelada. As marcas do desprezo e abandono nos olhos tristes, apagados de qualquer vestígio de luz. Entravam nos caminhões empurrados pelo cano do fuzil, os olhos já não tinham a lágrima, a inocência não tinha qualquer possibilidade para contradizer uma condenação sem sentido.
As noites mal dormidas, o pesadelo tomara conta dos sonhos alimentados no Brasil sob a expectativa de viver em paz com um mundo justo e civilizado. Até quando iria suportar conviver com uma raça que se dizia superiora, sustentada em sua natureza ariana com as botas de ferro de soldados impassíveis?
Depois que teve navios bombardeados na costa por submarinos alemães, o Brasil rompera as relações com a Alemanha nazista. Passou para o lado dos aliados, que tinham declarado guerra ao ditador de bigodinho nervoso, o que comandava passadas de ódio na matança de milhões indefesos por manadas desenfreadas.
No retorno, assim que desembarcou do avião, ao deixar a escada, a primeira coisa que fez foi se abaixar e dar um beijo no solo da pátria saudosa.
A pobreza no Brasil é mais complicada do que nos zaps que Bolsonaro recebe dos seus aspones
O presidente repetiu no debate o argumento da alienada fala sobre a fome do País: “Já viu alguém pedindo um pão?”. Para Bolsonaro, o Auxílio Brasil, de R$ 600, supera confortavelmente a linha da extrema pobreza. Esta, de US$ 1,90 por dia, giraria ao redor de R$ 10 diários, enquanto o Auxílio seria de R$ 20 por dia. Há quatro erros aí:
1. A linha de extrema pobreza é, na verdade, menor do que Bolsonaro pensa. Ela não é de US$ 1,90 por dia, mas de US$ 1,90 “PPC”: uma medida ajustada por poder de compra com base em pesquisas que comparam o custo de vida entre países.
Do Banco Mundial, é usada no Brasil pelo IBGE. É quase uma outra moeda, e no seu câmbio o valor está mais próximo de R$ 6 por dia. Quem está abaixo desta linha, portanto, vive com mais privações do que na linha imaginada por Bolsonaro;
2. O valor do Auxílio nem sempre supera a linha da extrema pobreza. A linha é de um consumo por pessoa, e o Auxílio é pago por família.
Em uma família com pais e três crianças, a média é de R$ 120 (R$ 600 por cinco). É, então, possível que uma família no Auxílio esteja na extrema pobreza. Enquanto o Bolsa Família e o auxílio emergencial pagavam valores maiores para famílias maiores, o Auxílio seguiu um valor único – para facilitar o marketing. É um dos seus pontos fracos. A desproporcionalidade faz com que o valor seja baixo em famílias vulneráveis, e alto, em outros casos;
3. Bolsonaro complementa que basta, para quem está fora do Auxílio, pedir para entrar, porque não haveria fila. É falso. Câmara e Senado aprovaram o fim das filas. O presidente vetou o avanço, e assim o governo nega o benefício mesmo a quem satisfaz seus critérios;
4. A queda na extrema pobreza que, de fato, ocorre com o Auxílio é compatível com a fome. A taxa de extrema pobreza mede o porcentual da população abaixo da citada linha. Mas não mede a distância dos miseráveis em relação a esta linha.
Quem está fora do Auxílio, sofrendo com a inflação, pode ter visto este hiato aumentar. A extrema pobreza cai, e a insuficiência de renda dos miseráveis aumenta. Podemos ter menos miseráveis do que antes, mas os miseráveis restantes podem estar em maior sofrimento.
A realidade é mais complicada do que nos zaps que Bolsonaro recebe dos seus aspones. O próximo governo precisará corrigir o Auxílio Brasil: pagar benefícios proporcionais, proibir as filas e instituir metas para a redução da extrema pobreza (outra inovação do Congresso que Bolsonaro vetou). Fundamental é sair do cercadinho.
1. A linha de extrema pobreza é, na verdade, menor do que Bolsonaro pensa. Ela não é de US$ 1,90 por dia, mas de US$ 1,90 “PPC”: uma medida ajustada por poder de compra com base em pesquisas que comparam o custo de vida entre países.
Do Banco Mundial, é usada no Brasil pelo IBGE. É quase uma outra moeda, e no seu câmbio o valor está mais próximo de R$ 6 por dia. Quem está abaixo desta linha, portanto, vive com mais privações do que na linha imaginada por Bolsonaro;
2. O valor do Auxílio nem sempre supera a linha da extrema pobreza. A linha é de um consumo por pessoa, e o Auxílio é pago por família.
Em uma família com pais e três crianças, a média é de R$ 120 (R$ 600 por cinco). É, então, possível que uma família no Auxílio esteja na extrema pobreza. Enquanto o Bolsa Família e o auxílio emergencial pagavam valores maiores para famílias maiores, o Auxílio seguiu um valor único – para facilitar o marketing. É um dos seus pontos fracos. A desproporcionalidade faz com que o valor seja baixo em famílias vulneráveis, e alto, em outros casos;
3. Bolsonaro complementa que basta, para quem está fora do Auxílio, pedir para entrar, porque não haveria fila. É falso. Câmara e Senado aprovaram o fim das filas. O presidente vetou o avanço, e assim o governo nega o benefício mesmo a quem satisfaz seus critérios;
4. A queda na extrema pobreza que, de fato, ocorre com o Auxílio é compatível com a fome. A taxa de extrema pobreza mede o porcentual da população abaixo da citada linha. Mas não mede a distância dos miseráveis em relação a esta linha.
Quem está fora do Auxílio, sofrendo com a inflação, pode ter visto este hiato aumentar. A extrema pobreza cai, e a insuficiência de renda dos miseráveis aumenta. Podemos ter menos miseráveis do que antes, mas os miseráveis restantes podem estar em maior sofrimento.
A realidade é mais complicada do que nos zaps que Bolsonaro recebe dos seus aspones. O próximo governo precisará corrigir o Auxílio Brasil: pagar benefícios proporcionais, proibir as filas e instituir metas para a redução da extrema pobreza (outra inovação do Congresso que Bolsonaro vetou). Fundamental é sair do cercadinho.
Capitalismo de atenção
A campanha eleitoral avança e o mal que a internet, redes sociais e aplicativos fazem a crianças e adolescentes não interessa a candidatos, e parece, nem a eleitores. A orgia digital produz imaturidade anatômica, funcional e ignorância hi-tech na geração atual.
O cérebro é uma massa modelar empobrecida pelo uso da internet e danificada pela tela do celular e do computador. A vida digital está em conexão direta com o abuso de idosos, abuso infantil, a pornografia, golpes financeiros, a ansiedade, depressão.
Não devia ser obrigatório que o celular se tornasse o centro da nossa vida, sob controle de terceiros. Pergunte a Interpol porque os crimes cibernéticos e o estelionato virtual estão se tornando a principal atividade econômica delinquencial de nosso tempo.
A sociedade homogênea nascida do consumo de tudo e da obcecada dependência das pessoas por Celular, Instagram, WhatsApp torna mais vulnerável três tipos de perfis humanos: os idosos, as crianças, os apressados.
Os bancos e o sistema financeiro ensinam a proteger sua conta pelo risco de prejuízo para eles. Enquanto, assentados na monomania dos juros altos legalizados pelo Banco Central, impede o crescimento econômico do país. Indicam orientação totalmente inumana para proteger a privacidade do dinheiro. A regra é fabricar labirintos alfanuméricos e aleatórios até chegar à biometria, a detecção do rosto como um ativo físico transferido aos outros para controle pessoal.
A lógica das senhas é assustadora. Nunca use datas ligadas ao coração ou ao afeto. Desconfie de tudo o tempo todo. Faça uma ferramenta, plataforma, um cofre nas nuvens. Quando você se esquecer que é humano, de carne, sangue, suor e osso, vá ao seu email secreto, recupere seu código de backup e se ainda existir um cartório de registro normal, imprima sua certidão de nascimento e tente relembrar quando sua vida era desconectada e feliz.
A tirania totalitária da internet se impôs como moda na linguagem. Cada vez mais se expressa emoção por emojis, ideogramas da preguiça afetiva e vocabular, sem se dar conta que a representação de sentimentos sem a necessidade da palavra, do verbo, nega a origem da humanidade.
A gramática dos guetos está se impondo, capturando pessoas para ser o que quiserem. Inclusive amorais, e justificarem suas escolhas e comportamentos egoístas protegidos por afinidades tecnológicas.
O impacto nocivo da tecnologia digital sobre a vida de crianças e adolescentes está destruindo na geração atual a aptidão para a liberdade. A genialidade hoje não é a inteligência, mas a extravagância. É hora de começar a tratar smartphone, tablets, televisão, celular, smartwatch, smarthglasses e os chips intracutâneos como da mesma natureza do álcool e da droga. Mesmo no absolutismo, o Código Penal francês (1791) previa como princípio “uma só morte por condenado”. Hoje se morre várias vezes, cotidianamente, por ansiedade, frustração, desrespeito, rixa, intriga, calúnia, difamação.
A vulnerabilidade de crianças e adolescentes não é somente socioeconômica, é especialmente, biológica, etária, psicológica. O trabalho infantil não está mais concentrado, exclusivamente, na economia informal, na produção agrícola, nas atividades ilícitas. Crianças e adolescentes são hoje mão de obra gratuita da tecnologia digital. Não é mais, predominantemente, a pobreza na ponta e o analfabetismo na outra.
O capitalismo de atenção atrai incautos para o trabalho não remunerado. E seu local de exploração são os dedos e os olhos de crianças e adolescentes, inertes em sua imaturidade física e emocional, abandonados horas e horas a fio, hipnotizados. O inocente, o espontâneo, o educado, o grosseiro, todos viciados, enriquecendo o mundo dos aplicativos. Dominados pela tecnologia, essa ave de rapina, sem freio, que se faz de galinha de terreiro e cacareja como se todos os seus ovos fossem magníficos.
O cérebro é uma massa modelar empobrecida pelo uso da internet e danificada pela tela do celular e do computador. A vida digital está em conexão direta com o abuso de idosos, abuso infantil, a pornografia, golpes financeiros, a ansiedade, depressão.
Não devia ser obrigatório que o celular se tornasse o centro da nossa vida, sob controle de terceiros. Pergunte a Interpol porque os crimes cibernéticos e o estelionato virtual estão se tornando a principal atividade econômica delinquencial de nosso tempo.
A sociedade homogênea nascida do consumo de tudo e da obcecada dependência das pessoas por Celular, Instagram, WhatsApp torna mais vulnerável três tipos de perfis humanos: os idosos, as crianças, os apressados.
Os bancos e o sistema financeiro ensinam a proteger sua conta pelo risco de prejuízo para eles. Enquanto, assentados na monomania dos juros altos legalizados pelo Banco Central, impede o crescimento econômico do país. Indicam orientação totalmente inumana para proteger a privacidade do dinheiro. A regra é fabricar labirintos alfanuméricos e aleatórios até chegar à biometria, a detecção do rosto como um ativo físico transferido aos outros para controle pessoal.
A lógica das senhas é assustadora. Nunca use datas ligadas ao coração ou ao afeto. Desconfie de tudo o tempo todo. Faça uma ferramenta, plataforma, um cofre nas nuvens. Quando você se esquecer que é humano, de carne, sangue, suor e osso, vá ao seu email secreto, recupere seu código de backup e se ainda existir um cartório de registro normal, imprima sua certidão de nascimento e tente relembrar quando sua vida era desconectada e feliz.
A tirania totalitária da internet se impôs como moda na linguagem. Cada vez mais se expressa emoção por emojis, ideogramas da preguiça afetiva e vocabular, sem se dar conta que a representação de sentimentos sem a necessidade da palavra, do verbo, nega a origem da humanidade.
A gramática dos guetos está se impondo, capturando pessoas para ser o que quiserem. Inclusive amorais, e justificarem suas escolhas e comportamentos egoístas protegidos por afinidades tecnológicas.
O impacto nocivo da tecnologia digital sobre a vida de crianças e adolescentes está destruindo na geração atual a aptidão para a liberdade. A genialidade hoje não é a inteligência, mas a extravagância. É hora de começar a tratar smartphone, tablets, televisão, celular, smartwatch, smarthglasses e os chips intracutâneos como da mesma natureza do álcool e da droga. Mesmo no absolutismo, o Código Penal francês (1791) previa como princípio “uma só morte por condenado”. Hoje se morre várias vezes, cotidianamente, por ansiedade, frustração, desrespeito, rixa, intriga, calúnia, difamação.
A vulnerabilidade de crianças e adolescentes não é somente socioeconômica, é especialmente, biológica, etária, psicológica. O trabalho infantil não está mais concentrado, exclusivamente, na economia informal, na produção agrícola, nas atividades ilícitas. Crianças e adolescentes são hoje mão de obra gratuita da tecnologia digital. Não é mais, predominantemente, a pobreza na ponta e o analfabetismo na outra.
O capitalismo de atenção atrai incautos para o trabalho não remunerado. E seu local de exploração são os dedos e os olhos de crianças e adolescentes, inertes em sua imaturidade física e emocional, abandonados horas e horas a fio, hipnotizados. O inocente, o espontâneo, o educado, o grosseiro, todos viciados, enriquecendo o mundo dos aplicativos. Dominados pela tecnologia, essa ave de rapina, sem freio, que se faz de galinha de terreiro e cacareja como se todos os seus ovos fossem magníficos.
terça-feira, 30 de agosto de 2022
Apoio policial à democracia enterra risco de golpe de Bolsonaro
O presidente Jair Bolsonaro tem cada vez menos espaço para tentar permanecer na Presidência a despeito do resultado das urnas eletrônicas. A viabilidade de uma aventura golpista começou a esvanescer em 2020, quando a demissão de Sérgio Moro retirou do presidente a bandeira da moralização da política. Afinal, o ex-juiz deixara o cargo em razão da interferência política na Polícia Federal, que, então, investigava o senador Flávio Bolsonaro, o filho do presidente que comprara uma mansão por R$ 6 milhões em Brasília.
Bolsonaro viu, desde então, minguar o apoio que recebia na caserna. O que restou virou expressão da defesa de salários milionários pagos a generais do governo, do reajuste muito acima do recebido pelo funcionalismo e do pagamento de auxílios revigorados. O bolsonarismo militar tem uma origem ideológica, uma visão de mundo comum, que liga parte da caserna ao presidente, mas até seus críticos nos quartéis lembram que sua manutenção é auxiliada pelas sinecuras distribuídas a oficiais e a seus parentes e amigos, fazendo da participação verde-oliva no governo uma espécie de projeto pessoal de parte dessa burocracia.
Em Os Donos do Poder, Raymundo Faoro já notara que a participação castrense no estamento condutor do País era parte indissociável da história do patrimonialismo. Ele ajudou a construir, nas palavras do jurista e cientista político, “essa civilização marcada pela veleidade, a fada que presidiu ao nascimento de certa personagem de Machado de Assis, claridade opaca, luz coada por um vidro fosco, figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos, sombra âmbula entre as sombras”.
A dificuldade de Bolsonaro de unir atrás de si as Forças Armadas pode ser medida pela decisão de substituir os comandantes militares em 2021; queria pessoas opacas, de luzes coadas por um vidro fosco, no lugar dos três que nomeara no começo do governo. Para a Força Aérea, nomeou o bolsonarista Carlos de Almeida Baptista Junior, brigadeiro tratado entusiasticamente já em 2019 pelos assessores do presidente. A Marinha foi entregue ao almirante Almir Garnier Santos, que achou normal fazer desfilar tanques pela Esplanada no dia em que o Congresso rejeitou a emenda do voto impresso.
Se o desfile era mera coincidência, porque, neste ano, durante o exercício em Formosa (GO), ele não se repetiu? Nem o presidente Bolsonaro foi assistir às manobras... Por que não se tentou, desta vez, fazer demonstrações na Praça dos Três Poderes? Movimentos políticos costumam prestar muita atenção ao que Émile Durkheim chamou de “dimensão simbólica que penetra a vida social”. Em As Formas Elementares da Vida Religiosa, ele afirmou que, “na base de todo sistema de crenças e de todos os cultos deve, necessariamente, haver certo número de representações fundamentais e atitudes rituais”.
Bolsonaro e os que o seguem precisam da reprodução constante desses símbolos e aproximá-los da forma como são vividos nas religiões. Em 2019, o desafio do presidente era fazer seu movimento político não ser percebido como mera captura do Palácio por antigos atores que sempre viveram em torno do Estado. Sabe-se, desde a Florença renascentista, que este tem o seu fundamento nas boas armas e nas boas leis produzidas por meio do consenso. Na ausência do último, apela-se à corrupção ou à força. Da queda de Moro ao 7 de Setembro de 2021, Bolsonaro pareceu manter a aposta naquela última.
Ao perceber que a maioria dos oficiais generais não o acompanharia em uma aventura e que a sociedade civil se organizava em defesa da democracia, sobrou ao presidente atrair o Centrão para o governo e, por meio do orçamento secreto, conseguir o que não obteve por meio de ameaças de ruptura institucional. Bolsonaro manteve, entretanto, o discurso de contestação do resultado das urnas. Quis condicionar sua decisão à aceitação de sugestões do Ministério da Defesa à Justiça Eleitoral, estratégia que parece fazer água.
Pesquisa recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que até mesmo onde mais se temia a influência do bolsonarismo – as forças policiais – a adesão à ideia democrática é grande (84% de apoio) e o mais importante de tudo: 81% dos policiais entrevistados em todo o País querem que o candidato declarado vencedor pela Justiça Eleitoral suba a rampa do Planalto. É verdade que esse índice é maior entre os policiais federais (89,1%) e menor entre os militares (76,5%), mas ainda assim o alto porcentual afasta definitivamente o caminho do golpe para quem deseja contestar as eleições.
Sobraria ao bolsonarismo a mobilização de um turba, uma ralé armada que seria contida pelas forças de segurança com as mesmas consequências vistas nos Estados Unidos, após a derrota de Donald Trump: condenações e prisões dos envolvidos, ameaçando abrir as portas do cárcere ao ex-presidente. Assim, resta a seu candidato lutar para vencer nas urnas. Só isso pode lhe garantir mais quatro anos no poder. E é por isso também que ele decidiu comparecer no domingo ao debate entre os candidatos à Presidência.
Vedado o caminho golpista, resta a Bolsonaro a submissão às regras do jogo e à disputa pelo voto dos brasileiros nas urnas eletrônicas. Uma disputa que as pesquisas indicam envolver o presidente e o petista Luiz Inácio Lula da Silva. No primeiro debate dessa campanha, a Defesa Nacional, suas Forças Armadas e os militares estiveram ausentes. Nenhum dos candidatos os citou. Nem as ameaças ao pleito. As pesquisas mostram que ameaçar a democracia contraria a maioria dos eleitores. Daí porque Bolsonaro tentou ligar Lula à Venezuela e o petista o chamou de mentiroso.
Mas o Brasil de 2022 não é o de 2018. Em 2018, o general Eduardo Villas Bôas tuitava para manter Lula na cadeia. Agora, manifesta-se na rede para defender a honra do Exército, tentando ligá-la à da Nação, como faziam os tribunos do século 19. Esqueceu o general que, aos olhos do marechal Deodoro da Fonseca, o soldado cidadão que proclamou a República se transformou em pouco tempo no “patriota de rua”, comprometendo a disciplina.
O novo tuíte de Villas Bôas trouxe ainda uma na ferradura. Ao se manifestar sobre a ordem do dia do general Freire Gomes, lida diante de Bolsonaro, no Dia do Soldado, ele escreveu: “Aos que nos atribuem possíveis intenções de agir fora do princípio da legalidade, legitimidade e estabilidade, nosso comandante disponibilizou uma didática fonte àqueles que, com boas intenções, desejam conhecer a alma do Exército.”
Assim, tenta-se fazer o Brasil chegar a mais uma eleição diante de seu passado. Buscou-se primeiro reviver as crises militares da República, em meio ao aparelhamento do Estado, típica sobrevivência do patrimonialismo descrito por Faoro. Procura-se agora o despertar de paisagens idílicas que nunca existiram e, dessa maneira, colocam-se outras armadilhas diante de nossa civilização, cobrindo-a, como escreveu o jurista e pensador, com uma “túnica rígida do passado inexaurível, pesado, sufocante”.
Bolsonaro viu, desde então, minguar o apoio que recebia na caserna. O que restou virou expressão da defesa de salários milionários pagos a generais do governo, do reajuste muito acima do recebido pelo funcionalismo e do pagamento de auxílios revigorados. O bolsonarismo militar tem uma origem ideológica, uma visão de mundo comum, que liga parte da caserna ao presidente, mas até seus críticos nos quartéis lembram que sua manutenção é auxiliada pelas sinecuras distribuídas a oficiais e a seus parentes e amigos, fazendo da participação verde-oliva no governo uma espécie de projeto pessoal de parte dessa burocracia.
Em Os Donos do Poder, Raymundo Faoro já notara que a participação castrense no estamento condutor do País era parte indissociável da história do patrimonialismo. Ele ajudou a construir, nas palavras do jurista e cientista político, “essa civilização marcada pela veleidade, a fada que presidiu ao nascimento de certa personagem de Machado de Assis, claridade opaca, luz coada por um vidro fosco, figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos, sombra âmbula entre as sombras”.
A dificuldade de Bolsonaro de unir atrás de si as Forças Armadas pode ser medida pela decisão de substituir os comandantes militares em 2021; queria pessoas opacas, de luzes coadas por um vidro fosco, no lugar dos três que nomeara no começo do governo. Para a Força Aérea, nomeou o bolsonarista Carlos de Almeida Baptista Junior, brigadeiro tratado entusiasticamente já em 2019 pelos assessores do presidente. A Marinha foi entregue ao almirante Almir Garnier Santos, que achou normal fazer desfilar tanques pela Esplanada no dia em que o Congresso rejeitou a emenda do voto impresso.
Se o desfile era mera coincidência, porque, neste ano, durante o exercício em Formosa (GO), ele não se repetiu? Nem o presidente Bolsonaro foi assistir às manobras... Por que não se tentou, desta vez, fazer demonstrações na Praça dos Três Poderes? Movimentos políticos costumam prestar muita atenção ao que Émile Durkheim chamou de “dimensão simbólica que penetra a vida social”. Em As Formas Elementares da Vida Religiosa, ele afirmou que, “na base de todo sistema de crenças e de todos os cultos deve, necessariamente, haver certo número de representações fundamentais e atitudes rituais”.
Bolsonaro e os que o seguem precisam da reprodução constante desses símbolos e aproximá-los da forma como são vividos nas religiões. Em 2019, o desafio do presidente era fazer seu movimento político não ser percebido como mera captura do Palácio por antigos atores que sempre viveram em torno do Estado. Sabe-se, desde a Florença renascentista, que este tem o seu fundamento nas boas armas e nas boas leis produzidas por meio do consenso. Na ausência do último, apela-se à corrupção ou à força. Da queda de Moro ao 7 de Setembro de 2021, Bolsonaro pareceu manter a aposta naquela última.
Ao perceber que a maioria dos oficiais generais não o acompanharia em uma aventura e que a sociedade civil se organizava em defesa da democracia, sobrou ao presidente atrair o Centrão para o governo e, por meio do orçamento secreto, conseguir o que não obteve por meio de ameaças de ruptura institucional. Bolsonaro manteve, entretanto, o discurso de contestação do resultado das urnas. Quis condicionar sua decisão à aceitação de sugestões do Ministério da Defesa à Justiça Eleitoral, estratégia que parece fazer água.
Pesquisa recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que até mesmo onde mais se temia a influência do bolsonarismo – as forças policiais – a adesão à ideia democrática é grande (84% de apoio) e o mais importante de tudo: 81% dos policiais entrevistados em todo o País querem que o candidato declarado vencedor pela Justiça Eleitoral suba a rampa do Planalto. É verdade que esse índice é maior entre os policiais federais (89,1%) e menor entre os militares (76,5%), mas ainda assim o alto porcentual afasta definitivamente o caminho do golpe para quem deseja contestar as eleições.
Sobraria ao bolsonarismo a mobilização de um turba, uma ralé armada que seria contida pelas forças de segurança com as mesmas consequências vistas nos Estados Unidos, após a derrota de Donald Trump: condenações e prisões dos envolvidos, ameaçando abrir as portas do cárcere ao ex-presidente. Assim, resta a seu candidato lutar para vencer nas urnas. Só isso pode lhe garantir mais quatro anos no poder. E é por isso também que ele decidiu comparecer no domingo ao debate entre os candidatos à Presidência.
Vedado o caminho golpista, resta a Bolsonaro a submissão às regras do jogo e à disputa pelo voto dos brasileiros nas urnas eletrônicas. Uma disputa que as pesquisas indicam envolver o presidente e o petista Luiz Inácio Lula da Silva. No primeiro debate dessa campanha, a Defesa Nacional, suas Forças Armadas e os militares estiveram ausentes. Nenhum dos candidatos os citou. Nem as ameaças ao pleito. As pesquisas mostram que ameaçar a democracia contraria a maioria dos eleitores. Daí porque Bolsonaro tentou ligar Lula à Venezuela e o petista o chamou de mentiroso.
Mas o Brasil de 2022 não é o de 2018. Em 2018, o general Eduardo Villas Bôas tuitava para manter Lula na cadeia. Agora, manifesta-se na rede para defender a honra do Exército, tentando ligá-la à da Nação, como faziam os tribunos do século 19. Esqueceu o general que, aos olhos do marechal Deodoro da Fonseca, o soldado cidadão que proclamou a República se transformou em pouco tempo no “patriota de rua”, comprometendo a disciplina.
O novo tuíte de Villas Bôas trouxe ainda uma na ferradura. Ao se manifestar sobre a ordem do dia do general Freire Gomes, lida diante de Bolsonaro, no Dia do Soldado, ele escreveu: “Aos que nos atribuem possíveis intenções de agir fora do princípio da legalidade, legitimidade e estabilidade, nosso comandante disponibilizou uma didática fonte àqueles que, com boas intenções, desejam conhecer a alma do Exército.”
Assim, tenta-se fazer o Brasil chegar a mais uma eleição diante de seu passado. Buscou-se primeiro reviver as crises militares da República, em meio ao aparelhamento do Estado, típica sobrevivência do patrimonialismo descrito por Faoro. Procura-se agora o despertar de paisagens idílicas que nunca existiram e, dessa maneira, colocam-se outras armadilhas diante de nossa civilização, cobrindo-a, como escreveu o jurista e pensador, com uma “túnica rígida do passado inexaurível, pesado, sufocante”.
Coração de Pedro solitário narrador
Nestes 200 anos de independência do Brasil, a grande ideia do governo foi trazer o coração de Dom Pedro I para uma exposição no país.
Não sei bem o que isso revela sobre nós. Poderia ser o cérebro, as amígdalas, o pomo de adão, não importa, certamente um debate mais amplo cumpriria melhor o papel de entender o que se passou por aqui e em Portugal no momento da independência.
Um coração transportado numa urna de mogno, madeira que, por sinal, foi quase extinta pela civilização luso-brasileira, dificilmente aumentará a compreensão dos brasileiros sobre sua história.
Na semana passada foi lançado um livro, “Adeus, Senhor Portugal” (Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira), em que os autores defendem a tese de que a conjuntura econômica teve um grande papel no surgimento do Brasil como país soberano. Eles não negam a importância das ideias iluministas que foram o pano de fundo da crise do absolutismo. Mas, ainda assim, afirmam nas primeiras linhas: “O Brasil nasceu de uma crise fiscal. Seu pai foi o déficit. Sua mãe, a inflação”.
É delicado discutir o nascimento do Brasil sob esse prisma, pois corremos o risco de concluir que não aprendemos nada em dois séculos. A inflação continua sendo um problema sério, e o rombo no Orçamento cada vez maior, sobretudo com a proximidade das eleições.
O mais interessante nessa história é que tanto a revolta do Porto em 1820 como a rebelião no ano seguinte no Brasil tinham em seu ideário algum controle social do Orçamento, enfeixado nas mãos do governo joanino.
Duzentos anos depois, avançamos pouco nesse quesito. O que os rebeldes queriam, a fiscalização parlamentar do Orçamento, acabou se tornando um pesadelo aqui deste lado do Atlântico. Estamos às voltas com uma luta contra o orçamento secreto, produto do casamento entre Bolsonaro e o Centrão.
É um tema que o país ainda não considerou adequadamente, porque os escândalos começam a pipocar em estados distantes: Alagoas, Maranhão. Quando o Brasil se der conta de que quase R$ 20 bilhões escoam pelo ralo, talvez nos reunamos de novo na Praça Tiradentes, como em fevereiro de 1821.
Há um dado adicional: Bolsonaro não revela seus gastos pessoais pagos pelo Tesouro. Alega questões de segurança.
Muita coisa mudou na forma. O desespero inflacionário atingia na época o consumo de farinha de mandioca e carne-seca. Hoje, carne e leite estão se tornando proibitivos.
A propensão para gastar acima das possibilidades continua sendo uma caraterística insuperável. No tempo de Dom João VI, ainda se podia propor a venda das joias da coroa; hoje, essa proposta se estende às grandes empresas estatais. Mas o que adianta vender, se a propensão a gastar muito nunca é saciada?
Na crise do absolutismo, havia um fator inexistente hoje: os soldados se rebelavam também por falta de pagamento de seus soldos. Os militares de hoje ganham melhor e recebem em dia. Alguns mais de R$ 100 mil por mês, e um grupo seleto de generais alcançou a cifra de R$ 1 milhão mensal, o equivalente ao que ganham craques de futebol, pagos pela iniciativa privada.
Nada disso se expressa num coração guardado numa urna de mogno. E tantas outras histórias mereciam ser contadas nestes 200 anos. O que diria José Bonifácio, considerado o Patriarca da Independência, da política de destruição da Amazônia levada a cabo por Bolsonaro e apoiada numa superada visão de defesa nacional formulada pelo general Golbery? Em José Bonifácio aliavam-se a preocupação com o meio ambiente e o combate ao despotismo. Duzentos anos depois, talvez fosse um deslocado no seu país, triturado por gabinetes do ódio nas redes sociais.
Creio que Ruy Guerra e Chico Buarque talvez descrevam em seu “Fado tropical” a saga desse coração ambulante: “Mesmo quando minhas mãos estão ocupadas em/torturar, esganar, trucidar/Meu coração fecha os olhos e, sinceramente, chora”.
Não sei bem o que isso revela sobre nós. Poderia ser o cérebro, as amígdalas, o pomo de adão, não importa, certamente um debate mais amplo cumpriria melhor o papel de entender o que se passou por aqui e em Portugal no momento da independência.
Um coração transportado numa urna de mogno, madeira que, por sinal, foi quase extinta pela civilização luso-brasileira, dificilmente aumentará a compreensão dos brasileiros sobre sua história.
Na semana passada foi lançado um livro, “Adeus, Senhor Portugal” (Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira), em que os autores defendem a tese de que a conjuntura econômica teve um grande papel no surgimento do Brasil como país soberano. Eles não negam a importância das ideias iluministas que foram o pano de fundo da crise do absolutismo. Mas, ainda assim, afirmam nas primeiras linhas: “O Brasil nasceu de uma crise fiscal. Seu pai foi o déficit. Sua mãe, a inflação”.
É delicado discutir o nascimento do Brasil sob esse prisma, pois corremos o risco de concluir que não aprendemos nada em dois séculos. A inflação continua sendo um problema sério, e o rombo no Orçamento cada vez maior, sobretudo com a proximidade das eleições.
O mais interessante nessa história é que tanto a revolta do Porto em 1820 como a rebelião no ano seguinte no Brasil tinham em seu ideário algum controle social do Orçamento, enfeixado nas mãos do governo joanino.
Duzentos anos depois, avançamos pouco nesse quesito. O que os rebeldes queriam, a fiscalização parlamentar do Orçamento, acabou se tornando um pesadelo aqui deste lado do Atlântico. Estamos às voltas com uma luta contra o orçamento secreto, produto do casamento entre Bolsonaro e o Centrão.
É um tema que o país ainda não considerou adequadamente, porque os escândalos começam a pipocar em estados distantes: Alagoas, Maranhão. Quando o Brasil se der conta de que quase R$ 20 bilhões escoam pelo ralo, talvez nos reunamos de novo na Praça Tiradentes, como em fevereiro de 1821.
Há um dado adicional: Bolsonaro não revela seus gastos pessoais pagos pelo Tesouro. Alega questões de segurança.
Muita coisa mudou na forma. O desespero inflacionário atingia na época o consumo de farinha de mandioca e carne-seca. Hoje, carne e leite estão se tornando proibitivos.
A propensão para gastar acima das possibilidades continua sendo uma caraterística insuperável. No tempo de Dom João VI, ainda se podia propor a venda das joias da coroa; hoje, essa proposta se estende às grandes empresas estatais. Mas o que adianta vender, se a propensão a gastar muito nunca é saciada?
Na crise do absolutismo, havia um fator inexistente hoje: os soldados se rebelavam também por falta de pagamento de seus soldos. Os militares de hoje ganham melhor e recebem em dia. Alguns mais de R$ 100 mil por mês, e um grupo seleto de generais alcançou a cifra de R$ 1 milhão mensal, o equivalente ao que ganham craques de futebol, pagos pela iniciativa privada.
Nada disso se expressa num coração guardado numa urna de mogno. E tantas outras histórias mereciam ser contadas nestes 200 anos. O que diria José Bonifácio, considerado o Patriarca da Independência, da política de destruição da Amazônia levada a cabo por Bolsonaro e apoiada numa superada visão de defesa nacional formulada pelo general Golbery? Em José Bonifácio aliavam-se a preocupação com o meio ambiente e o combate ao despotismo. Duzentos anos depois, talvez fosse um deslocado no seu país, triturado por gabinetes do ódio nas redes sociais.
Creio que Ruy Guerra e Chico Buarque talvez descrevam em seu “Fado tropical” a saga desse coração ambulante: “Mesmo quando minhas mãos estão ocupadas em/torturar, esganar, trucidar/Meu coração fecha os olhos e, sinceramente, chora”.
A política do demônio
Chegasse um marciano ao Brasil, ficaria certamente confuso, se não espantado, com narrativas político-religiosas do casal presidencial, dirigidas ao casal opositor mais forte e por ele contestadas. Primeiro, ficaria surpreso pelo uso indiscriminado da palavra demônio, como se estivéssemos tratando de pessoas reais, numa espécie de cruzada religiosa. Seria a luta dos bons contra os maus, de anjos contra demônios, uns representando a verdadeira religião, os outros, a falsa. Estranharia, segundo, que pouco se fala de soluções, ideias e propostas para o País, como a fome, a alta inflação dos alimentos, a irresponsabilidade fiscal do atual governo, que só procura dar benesses a seus apaniguados, frequentemente sob a forma das mais diferentes emendas parlamentares. Falta dinheiro de um lado, sobra de outro.
Provavelmente, seria ele tentado a dizer que se trata de um país de malucos, o que talvez fosse um juízo sensato diante deste manicômio em que se tornou a política brasileira. Se se tratasse de uma encenação de bruxos e demônios, certamente acharia mais interessante um filme de Harry Potter, com bons atores e boas atuações, algo muito diferente do que ocorre aqui, com atores deploráveis. Acharia que o mundo da ficção seria mais estimulante que a política ficcional atual, com a diferença de que essa é bem real. Nem conseguem fingir direito atos de compunção, que parecem francamente grotescos. É como se a cena brasileira tivesse se tornado uma história do capeta. Contudo, até essa comparação seria inapropriada, pois o capeta é muito mais esperto.
O pano de fundo de tal encenação político-demoníaca consiste na captura do voto evangélico, em detrimento manifesto, por exemplo, de religiões e cultos de origem africana, tratados com o maior desprezo. Na era da tolerância e de regimes políticos laicos, que fizeram a separação entre Igreja e Estado, volta-se a uma mistura extremamente perniciosa, que pode ter consequências graves do ponto das liberdades e da organização mesma do Estado. Note-se que a preocupação com o eleitorado evangélico é essencialmente político-eleitoral, visto que os seus fiéis tendem a seguir as orientações dos seus pastores, algo que não ocorre, por exemplo, com os adeptos das religiões católica e protestante.
Entretanto, isso não significa que os fiéis sigam os seus pastores como pessoas sem rumo próprio. Se o fazem, é porque defendem valores determinados como a luta contra o aborto, a ideologia de gênero, sobretudo nas escolas, a união civil de pessoas do mesmo sexo, em defesa da ideia tradicional de família. Se um pastor se desviar desses valores, seus fiéis dele também se distanciarão. Eis, aliás, a imensa dificuldade do ex-presidente Lula em ingressar neste segmento, pois a sua política e a do seu partido não somente discordam desses valores, como sempre buscaram colocar seus próprios princípios de uma maneira impositiva. É como se uma maioria devesse simplesmente seguir uma minoria por ser esta politicamente correta. Produziram, com isso, a adesão maciça dos evangélicos a Bolsonaro.
Sobra ao candidato petista aquele setor evangélico mais desfavorecido socialmente, o que tem dificuldades com emprego, com o preço dos alimentos nos supermercados, com educação pública ruim e precárias condições de saúde. Aqui, são outros valores – os da sobrevivência – que terminam por ganhar proeminência. Inteligentemente, o atual presidente procura desviar a atenção destes desfavorecidos, dando-lhes um auxílio socioeleitoral e procurando atraí-los para uma encenação canhestra, a de que o demônio estaria à espreita.
À espreita de quê? Comer a alma de alguém? Lançar os desavisados numa sucessão intermitente de pecados, como se a danação estivesse a todos ameaçando? Onde fica o País neste cenário tumultuado de crise social, política e econômica? Sairá à caça de exorcistas?
Ocorre que nossos exorcistas contemporâneos ganham uma roupagem política, atribuindo a si mesmos uma missão. É como se Bolsonaro fosse não Jair, mas um Messias autóctone, tendo como destino a salvação do País. Os demônios não são, nessa perspectiva, alguns credos assim representados, mas o comunismo, o ateísmo e os petistas e grupos esquerdizantes em suas várias correntes. Tudo entra e se configura num quadro político religioso, em que o “mito” de 2018 se apresenta como o Messias de 2022.
Naquele então, poder-se-ia dizer que se tratava de um abuso de linguagem, uma piada de mau gosto, mas uma piada. Todavia, nestes quatro anos, embora de uma forma tosca e teologicamente não elaborada, o discurso do demônio tende a adquirir uma significação real. Não estaríamos diante de um processo eleitoral normal, próprio da democracia e do rodízio dos que ocupam o poder, sempre de uma forma temporária, mas de uma cruzada religiosa, uma encruzilhada que a todos deveria aterrorizar. O marciano, apavorado, resolveu voltar ao seu planeta. Não entendeu nada!
Provavelmente, seria ele tentado a dizer que se trata de um país de malucos, o que talvez fosse um juízo sensato diante deste manicômio em que se tornou a política brasileira. Se se tratasse de uma encenação de bruxos e demônios, certamente acharia mais interessante um filme de Harry Potter, com bons atores e boas atuações, algo muito diferente do que ocorre aqui, com atores deploráveis. Acharia que o mundo da ficção seria mais estimulante que a política ficcional atual, com a diferença de que essa é bem real. Nem conseguem fingir direito atos de compunção, que parecem francamente grotescos. É como se a cena brasileira tivesse se tornado uma história do capeta. Contudo, até essa comparação seria inapropriada, pois o capeta é muito mais esperto.
O pano de fundo de tal encenação político-demoníaca consiste na captura do voto evangélico, em detrimento manifesto, por exemplo, de religiões e cultos de origem africana, tratados com o maior desprezo. Na era da tolerância e de regimes políticos laicos, que fizeram a separação entre Igreja e Estado, volta-se a uma mistura extremamente perniciosa, que pode ter consequências graves do ponto das liberdades e da organização mesma do Estado. Note-se que a preocupação com o eleitorado evangélico é essencialmente político-eleitoral, visto que os seus fiéis tendem a seguir as orientações dos seus pastores, algo que não ocorre, por exemplo, com os adeptos das religiões católica e protestante.
Entretanto, isso não significa que os fiéis sigam os seus pastores como pessoas sem rumo próprio. Se o fazem, é porque defendem valores determinados como a luta contra o aborto, a ideologia de gênero, sobretudo nas escolas, a união civil de pessoas do mesmo sexo, em defesa da ideia tradicional de família. Se um pastor se desviar desses valores, seus fiéis dele também se distanciarão. Eis, aliás, a imensa dificuldade do ex-presidente Lula em ingressar neste segmento, pois a sua política e a do seu partido não somente discordam desses valores, como sempre buscaram colocar seus próprios princípios de uma maneira impositiva. É como se uma maioria devesse simplesmente seguir uma minoria por ser esta politicamente correta. Produziram, com isso, a adesão maciça dos evangélicos a Bolsonaro.
Sobra ao candidato petista aquele setor evangélico mais desfavorecido socialmente, o que tem dificuldades com emprego, com o preço dos alimentos nos supermercados, com educação pública ruim e precárias condições de saúde. Aqui, são outros valores – os da sobrevivência – que terminam por ganhar proeminência. Inteligentemente, o atual presidente procura desviar a atenção destes desfavorecidos, dando-lhes um auxílio socioeleitoral e procurando atraí-los para uma encenação canhestra, a de que o demônio estaria à espreita.
À espreita de quê? Comer a alma de alguém? Lançar os desavisados numa sucessão intermitente de pecados, como se a danação estivesse a todos ameaçando? Onde fica o País neste cenário tumultuado de crise social, política e econômica? Sairá à caça de exorcistas?
Ocorre que nossos exorcistas contemporâneos ganham uma roupagem política, atribuindo a si mesmos uma missão. É como se Bolsonaro fosse não Jair, mas um Messias autóctone, tendo como destino a salvação do País. Os demônios não são, nessa perspectiva, alguns credos assim representados, mas o comunismo, o ateísmo e os petistas e grupos esquerdizantes em suas várias correntes. Tudo entra e se configura num quadro político religioso, em que o “mito” de 2018 se apresenta como o Messias de 2022.
Naquele então, poder-se-ia dizer que se tratava de um abuso de linguagem, uma piada de mau gosto, mas uma piada. Todavia, nestes quatro anos, embora de uma forma tosca e teologicamente não elaborada, o discurso do demônio tende a adquirir uma significação real. Não estaríamos diante de um processo eleitoral normal, próprio da democracia e do rodízio dos que ocupam o poder, sempre de uma forma temporária, mas de uma cruzada religiosa, uma encruzilhada que a todos deveria aterrorizar. O marciano, apavorado, resolveu voltar ao seu planeta. Não entendeu nada!
Repetindo os mesmos erros
Mesmo um exame superficial da história revela que nós, seres humanos, temos uma triste tendência para cometer os mesmos erros repetidas vezes. Temos medo dos desconhecidos ou de qualquer pessoa que seja um pouco diferente de nós. Quando ficamos assustados, começamos a ser agressivos para as pessoas que nos rodeiam. Temos botões de fácil acesso que, quando carregamos neles, libertam emoções poderosas. Podemos ser manipulados até extremos de insensatez por políticos espertos. Deem-nos o tipo de chefe certo e, tal como o mais sugestionável paciente do terapeuta pela hipnose, faremos de bom grado quase tudo o que ele quer – mesmo coisas que sabemos serem erradasCarl Sagan, "O mundo infestado de demônios"
Mudar é preciso, mas para onde?
Sente-se no ar um desejo de mudança. Tão forte que é como se pudéssemos apalpá-lo. Como está não pode ficar, ouve-se por toda parte. A democracia precisa ser defendida contra os arreganhos autoritários. A inflação come os bolsos da população, afeta os mais pobres de maneira vil. Os sintomas de uma crise aguda, múltipla, latejam sem cessar.
Os democratas se mobilizam, lançam cartas e manifestos que vocalizam a insatisfação e a disposição de luta. Atores posicionados em campos distintos se reúnem para defender a Constituição, as regras eleitorais, as urnas eletrônicas. Alerta-se para o risco que correremos se a mudança tardar, se o mau governo atual prolongar sua existência, com tudo o que exibiu nos últimos quatro anos: o desprezo pela política democrática, a falta de empatia, o descalabro administrativo, a grosseria, a ausência de compostura e de respeito presidencial ao cargo.
O desejo de mudança impregna o ar, mas não necessariamente irá vencer nas eleições de outubro próximo.
Antes de tudo, porque mudar é sempre difícil. Exige que personagens reconheçam erros e incompetências. Passa por deslocamentos (de pessoas, de ideias, de hábitos) que custam a se completar. Não é só uma troca de roupas, ou de governantes.
Mesmo que vençam os candidatos mais democráticos, não há consensos fortes sobre para onde o Brasil deve caminhar. Ninguém explica que país é este e como fazê-lo mudar de rota. Sabe-se que é preciso acabar com a fome, a miséria, as desigualdades, recuperar a economia, melhorar a educação e a segurança pública, reformar o sistema político para que produza mais governança. Mas tudo isso depende de uma logística política que não foi, até agora, explicitada. O pouco que temos tido de oferta programática (Ciro Gomes, por exemplo) não é acompanhado de uma ideia de “bloco histórico”, ou seja, de uma composição de forças com coragem e disposição para mudar a face da sociedade. Fica-se mais na periferia da agenda reformista do que em seu centro vital.
O desejo de mudança é diversificado e plural. Tem razões distintas e não se encarna em um único ponto do espectro político. Há muitos trânsfugas nos pontos mais fortes, Lula e Bolsonaro. Ambos parecem garantidos no segundo turno, mas ainda batalham para reter seus simpatizantes. Há um miolo que gostaria de achar uma saída para que se rompa essa polarização. Tampouco esse miolo está unido em torno de um só nome. Além da concorrência e da falta de entendimentos internos, a “terceira via” – o centro democrático – precisa enfrentar os apelos para que se resolva a eleição no primeiro turno, ou seja, para que os votos sejam depositados desde logo no candidato com melhores condições de derrotar o autoritarismo.
Esses apelos têm algum sentido, mas não consideram o quadro todo. E se o centro democrático puder sobrepujar o extremismo e chegar ao segundo turno? Seus candidatos não poderão contribuir para desgastar as posições autoritárias? O petismo mais encarniçado não se põe nenhuma dessas perguntas, preferindo estigmatizar a “terceira via”. O bolsonarismo treme só de pensar nelas.
Eleições em dois turnos são um artifício para contornar escolhas plebiscitárias. Para dar aos eleitores um leque de opções que reflita a diversidade de pontos de vista que há na sociedade. A dinâmica é conhecida: você vota com o coração no primeiro turno e com a razão no segundo. No primeiro turno, os candidatos trabalham para se autofortalecer. No segundo, negociam para fortalecer a melhor saída para o País. É um sistema inteligente, pensado para expressar a heterogeneidade social, reforçar a representatividade do eleito e aumentar suas chances de fazer um bom governo.
Com uma polarização em plena velocidade, a lógica dos dois turnos tem dificuldades para prevalecer. Não é o eleitorado todo que a compreende. Alguns não gostam dela. E há os afoitos, que preferem que tudo se resolva no primeiro turno, de um jeito ou de outro. Desejo de mudança, medo, ansiedade, insegurança e incerteza se acomodam no eleitorado, deixando-o indeciso.
Há uma cláusula aceita pelos analistas políticos que acompanham processos eleitorais mais recentes, no mundo todo: muitos eleitores fazem suas escolhas nos últimos dias das campanhas. Trancam seu voto numa caixinha de segredos, de modo a entender melhor o quadro eleitoral, ouvir vizinhos, amigos e familiares, ponderar com calma, mastigar suas dúvidas e indefinições, confiando em que da mastigação sairá a solução.
Não há bandeiras ideológicas desfraldadas nem utopias iluminando o futuro. Os polos muitas vezes são mais semelhantes entre si do que diferentes e não apresentam programas com intenções pedagógicas – que expliquem o que se pretende fazer. É razoável que o eleitor se sinta indeciso. Ele olha para seus interesses e suas expectativas, e percebe que está vazio de convicções. Não é culpa dele. Com a oferta política que tem à disposição, suas escolhas se tornam inevitavelmente dilemas.
Os democratas se mobilizam, lançam cartas e manifestos que vocalizam a insatisfação e a disposição de luta. Atores posicionados em campos distintos se reúnem para defender a Constituição, as regras eleitorais, as urnas eletrônicas. Alerta-se para o risco que correremos se a mudança tardar, se o mau governo atual prolongar sua existência, com tudo o que exibiu nos últimos quatro anos: o desprezo pela política democrática, a falta de empatia, o descalabro administrativo, a grosseria, a ausência de compostura e de respeito presidencial ao cargo.
O desejo de mudança impregna o ar, mas não necessariamente irá vencer nas eleições de outubro próximo.
Antes de tudo, porque mudar é sempre difícil. Exige que personagens reconheçam erros e incompetências. Passa por deslocamentos (de pessoas, de ideias, de hábitos) que custam a se completar. Não é só uma troca de roupas, ou de governantes.
Mesmo que vençam os candidatos mais democráticos, não há consensos fortes sobre para onde o Brasil deve caminhar. Ninguém explica que país é este e como fazê-lo mudar de rota. Sabe-se que é preciso acabar com a fome, a miséria, as desigualdades, recuperar a economia, melhorar a educação e a segurança pública, reformar o sistema político para que produza mais governança. Mas tudo isso depende de uma logística política que não foi, até agora, explicitada. O pouco que temos tido de oferta programática (Ciro Gomes, por exemplo) não é acompanhado de uma ideia de “bloco histórico”, ou seja, de uma composição de forças com coragem e disposição para mudar a face da sociedade. Fica-se mais na periferia da agenda reformista do que em seu centro vital.
O desejo de mudança é diversificado e plural. Tem razões distintas e não se encarna em um único ponto do espectro político. Há muitos trânsfugas nos pontos mais fortes, Lula e Bolsonaro. Ambos parecem garantidos no segundo turno, mas ainda batalham para reter seus simpatizantes. Há um miolo que gostaria de achar uma saída para que se rompa essa polarização. Tampouco esse miolo está unido em torno de um só nome. Além da concorrência e da falta de entendimentos internos, a “terceira via” – o centro democrático – precisa enfrentar os apelos para que se resolva a eleição no primeiro turno, ou seja, para que os votos sejam depositados desde logo no candidato com melhores condições de derrotar o autoritarismo.
Esses apelos têm algum sentido, mas não consideram o quadro todo. E se o centro democrático puder sobrepujar o extremismo e chegar ao segundo turno? Seus candidatos não poderão contribuir para desgastar as posições autoritárias? O petismo mais encarniçado não se põe nenhuma dessas perguntas, preferindo estigmatizar a “terceira via”. O bolsonarismo treme só de pensar nelas.
Eleições em dois turnos são um artifício para contornar escolhas plebiscitárias. Para dar aos eleitores um leque de opções que reflita a diversidade de pontos de vista que há na sociedade. A dinâmica é conhecida: você vota com o coração no primeiro turno e com a razão no segundo. No primeiro turno, os candidatos trabalham para se autofortalecer. No segundo, negociam para fortalecer a melhor saída para o País. É um sistema inteligente, pensado para expressar a heterogeneidade social, reforçar a representatividade do eleito e aumentar suas chances de fazer um bom governo.
Com uma polarização em plena velocidade, a lógica dos dois turnos tem dificuldades para prevalecer. Não é o eleitorado todo que a compreende. Alguns não gostam dela. E há os afoitos, que preferem que tudo se resolva no primeiro turno, de um jeito ou de outro. Desejo de mudança, medo, ansiedade, insegurança e incerteza se acomodam no eleitorado, deixando-o indeciso.
Há uma cláusula aceita pelos analistas políticos que acompanham processos eleitorais mais recentes, no mundo todo: muitos eleitores fazem suas escolhas nos últimos dias das campanhas. Trancam seu voto numa caixinha de segredos, de modo a entender melhor o quadro eleitoral, ouvir vizinhos, amigos e familiares, ponderar com calma, mastigar suas dúvidas e indefinições, confiando em que da mastigação sairá a solução.
Não há bandeiras ideológicas desfraldadas nem utopias iluminando o futuro. Os polos muitas vezes são mais semelhantes entre si do que diferentes e não apresentam programas com intenções pedagógicas – que expliquem o que se pretende fazer. É razoável que o eleitor se sinta indeciso. Ele olha para seus interesses e suas expectativas, e percebe que está vazio de convicções. Não é culpa dele. Com a oferta política que tem à disposição, suas escolhas se tornam inevitavelmente dilemas.
sábado, 27 de agosto de 2022
Os pobres mais pobres estão perdendo suas estratégias de sobrevivência
Em entrevista a Marcelo Osakabe, do Valor, Ricardo Paes de Barros, destacado estudioso da pobreza no Brasil, chama atenção para o fato de que os pobres mais pobres estão perdendo suas estratégias de sobrevivência. Isto é, a de busca e uso dos recursos e expedientes de economia marginal que lhes permita sobreviver com as sobras, resíduos e desperdícios do sistema econômico. O mercado marginal da economia dominante e propriamente capitalista.
Nessa importante constatação para compreender a crise econômica e social atual, o economista desenvolve e sugere uma reflexão paralelamente sociológica sobre a economia da pobreza. Perder estratégias de sobrevivência significa que, nos diferentes grupos e categorias sociais, mesmo entre os desvalidos, a sociedade que inventava soluções de emergência para suas adversidades perde sua capacidade de fazê-lo.
Os seres humanos, qualquer que seja sua condição, reinventam a sociedade continuamente, à medida que normas e valores que dão sentido ao seu modo de viver são corroídos e invalidados por transformações econômicas, políticas e sociais que independem de sua vontade.
Isso se torna claramente visível no que pode ser definido como sociabilidade do desemprego, quando a sociedade cria uma estrutura social paralela com base na invenção de regras de vida social anômala para ajustamento de emergência de suas vítimas às condições disponíveis.
Embora a análise de Paes de Barros esteja limitada ao que é propriamente o econômico da pobreza, ela pode ser compreendida, também, do ponto de vista social e sociológico. Nesse caso sua constatação indica a conveniência de estender a reflexão para outros aspectos da realidade social para termos uma compreensão abrangente do drama social da pobreza e de suas repercussões na própria sobrevivência da ordem econômica.
Ressalto dois aspectos desse drama numa sociedade como esta, hoje marcada pela reestruturação produtiva, pela desindustrialização, pelo desemprego, pela desvalorização do trabalho mesmo quando emprego há.
Restringida ao propriamente econômico e à perspectiva do economista, a pobreza, entre nós, ainda não dispõe de todo o elenco de conceitos que podem defini-la e permitir diagnósticos que possam fundamentar políticas de sua superação responsável.
Estados gravíssimos de pobreza, como a nossa, que chega à enormidade de 33 milhões de famintos, têm sua presumível e não comprovada solução limitada à concepção da economia neoliberal de que o crescimento econômico e as transformações dele decorrentes criarão automaticamente o reajustamento da sociedade à nova realidade. Os teóricos dessa linha de interpretação não levam em conta o tempo e a demora desse reajustamento, quase sempre, no mínimo, o de uma geração inteira sacrificada antes do tempo e de concluir seu ciclo de vida.
A desvalorização do trabalho decorre sobretudo da substituição de trabalho por tecnologia, o que é fatal quando o progresso técnico é mais rápido do que o crescimento demográfico. Nessa situação, sempre haverá e tem havido crescente excedente de pessoas sem lugar, à margem das possibilidades de ocupação produtiva nesse modelo de economia. O de cada vez mais trabalhadores em busca de trabalho do que de trabalho à procura de trabalhadores.
Essas interrupções no ciclo de reinserção no trabalho dessocializam o trabalhador, invalidam nele o conhecimento que até então o mantinha no processo produtivo, descartam o capital social contido na formação profissional de quem trabalha. No limite, desestruturam sua personalidade e o marginalizam, socialmente excluído. São os casos de efetiva exclusão com a morte social, comuns entre moradores de rua.
Há um segundo problema decorrente desse processo. Há algum tempo, começaram a surgir sinais de que a cultura que assegura a eficácia dos expedientes do imaginário de sobrevivência das populações em estado de penúria estava se esgotando.
O mais significativo dos sinais foi o da perda de competência imaginativa dos pobres que chegaram ao limite na manipulação das impressões que os outros tinham a seu respeito. Ou seja, a perda de capacidade de construir sua imagem social. Na sociedade moderna, cada um só está integrado se tiver como definir-se para ser socialmente aceito e valorizado. Mesmo em situação de grande pobreza, muitos ainda conseguem imaginar-se para serem reconhecidos e imaginados. É o outro o mediador do nosso renascimento social cotidiano. Isso é a sociedade moderna. O carecimento dessa competência criativa indica não só que a sociedade está se tornando radicalmente pobre, mas que está morrendo. A morte social das minorias excluídas é a morte da sociedade inteira.
Nessa importante constatação para compreender a crise econômica e social atual, o economista desenvolve e sugere uma reflexão paralelamente sociológica sobre a economia da pobreza. Perder estratégias de sobrevivência significa que, nos diferentes grupos e categorias sociais, mesmo entre os desvalidos, a sociedade que inventava soluções de emergência para suas adversidades perde sua capacidade de fazê-lo.
Os seres humanos, qualquer que seja sua condição, reinventam a sociedade continuamente, à medida que normas e valores que dão sentido ao seu modo de viver são corroídos e invalidados por transformações econômicas, políticas e sociais que independem de sua vontade.
Isso se torna claramente visível no que pode ser definido como sociabilidade do desemprego, quando a sociedade cria uma estrutura social paralela com base na invenção de regras de vida social anômala para ajustamento de emergência de suas vítimas às condições disponíveis.
Embora a análise de Paes de Barros esteja limitada ao que é propriamente o econômico da pobreza, ela pode ser compreendida, também, do ponto de vista social e sociológico. Nesse caso sua constatação indica a conveniência de estender a reflexão para outros aspectos da realidade social para termos uma compreensão abrangente do drama social da pobreza e de suas repercussões na própria sobrevivência da ordem econômica.
Ressalto dois aspectos desse drama numa sociedade como esta, hoje marcada pela reestruturação produtiva, pela desindustrialização, pelo desemprego, pela desvalorização do trabalho mesmo quando emprego há.
Restringida ao propriamente econômico e à perspectiva do economista, a pobreza, entre nós, ainda não dispõe de todo o elenco de conceitos que podem defini-la e permitir diagnósticos que possam fundamentar políticas de sua superação responsável.
Estados gravíssimos de pobreza, como a nossa, que chega à enormidade de 33 milhões de famintos, têm sua presumível e não comprovada solução limitada à concepção da economia neoliberal de que o crescimento econômico e as transformações dele decorrentes criarão automaticamente o reajustamento da sociedade à nova realidade. Os teóricos dessa linha de interpretação não levam em conta o tempo e a demora desse reajustamento, quase sempre, no mínimo, o de uma geração inteira sacrificada antes do tempo e de concluir seu ciclo de vida.
A desvalorização do trabalho decorre sobretudo da substituição de trabalho por tecnologia, o que é fatal quando o progresso técnico é mais rápido do que o crescimento demográfico. Nessa situação, sempre haverá e tem havido crescente excedente de pessoas sem lugar, à margem das possibilidades de ocupação produtiva nesse modelo de economia. O de cada vez mais trabalhadores em busca de trabalho do que de trabalho à procura de trabalhadores.
Essas interrupções no ciclo de reinserção no trabalho dessocializam o trabalhador, invalidam nele o conhecimento que até então o mantinha no processo produtivo, descartam o capital social contido na formação profissional de quem trabalha. No limite, desestruturam sua personalidade e o marginalizam, socialmente excluído. São os casos de efetiva exclusão com a morte social, comuns entre moradores de rua.
Há um segundo problema decorrente desse processo. Há algum tempo, começaram a surgir sinais de que a cultura que assegura a eficácia dos expedientes do imaginário de sobrevivência das populações em estado de penúria estava se esgotando.
O mais significativo dos sinais foi o da perda de competência imaginativa dos pobres que chegaram ao limite na manipulação das impressões que os outros tinham a seu respeito. Ou seja, a perda de capacidade de construir sua imagem social. Na sociedade moderna, cada um só está integrado se tiver como definir-se para ser socialmente aceito e valorizado. Mesmo em situação de grande pobreza, muitos ainda conseguem imaginar-se para serem reconhecidos e imaginados. É o outro o mediador do nosso renascimento social cotidiano. Isso é a sociedade moderna. O carecimento dessa competência criativa indica não só que a sociedade está se tornando radicalmente pobre, mas que está morrendo. A morte social das minorias excluídas é a morte da sociedade inteira.
Cartas mobilizadoras da sociedade podem evitar um caminho que nos afasta do século XXI
A organização da sociedade civil brasileira foi fundamental para evitar qualquer tipo de golpe contra as eleições presidenciais de 2022. O primeiro round pela democracia foi vencido, graças à utilização de um modelo de cartas de princípios que firmam compromissos entre os grupos mais diversos, como UNE, Febraban, centrais sindicais, intelectuais, advogados, Fiesp e outros, a fim de definir o que é prioritário para o futuro do país. Esse modelo deve ser expandido para outros temas porque salvar o regime democrático é apenas o ponto inicial a partir do qual juntaremos as peças necessárias ao desenvolvimento do Brasil.
A “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito”, documento-síntese da mobilização contra o golpismo, somou-se à pressão internacional (principalmente dos EUA), permitindo que o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, ganhasse o apoio necessário para que a Justiça não ficasse mais sozinha na luta contra os autoritários. Ainda há riscos democráticos caso Bolsonaro vença e tente o plano Orbán de expandir os poderes presidenciais e aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal. Será preciso criar instrumentos de monitoramento, com suporte social amplo e diverso, para acompanhar e evitar que a democracia se quebre sem que haja um golpe de Estado clássico.
Mantida a institucionalidade democrático-liberal, serão necessários outros passos para reconstruir políticas públicas destruídas nos últimos anos e colocar o país nos trilhos do século XXI. Esse processo exigirá diagnósticos técnicos sólidos sobre os principais temas nacionais, pois o custo do amadorismo e do negacionismo científico já foi muito alto e tende a se intensificar com a competição internacional e com a complexificação dos problemas em todo o mundo. Nessa linha de solução, documentos vindos de diversas áreas e com grande qualidade apareceram nos últimos meses. Eles deveriam ser lidos e discutidos obrigatoriamente por todos os candidatos e pelas pessoas preocupadas em melhorar o país.
Um exemplo disso é o “Educação Já”, documento preparado pelo Todos Pela Educação. Nele há um diagnóstico sistêmico da política educacional, mostrando que não há uma bala de prata para resolver as mazelas do ensino brasileiro e que, ao contrário, é preciso atuar em várias frentes. Essa proposta não se baseia apenas em estudos e evidências empíricas robustas. Ela se alimentou da experiência prática de um conjunto seleto de gestores que conhecem as enormes dificuldades para fazer reformas e construir políticas públicas efetivas. Assim, não basta saber o que fazer; é essencial saber como fazer.
O “Educação Já” está sendo apresentado para candidatos em todo o país e também será discutido com diversos setores sociais. O debate educacional é urgente porque os estudos revelam o desastre recente do país nessa área, com um retrocesso gigantesco durante a pandemia. O fato é que o governo Bolsonaro não apenas escolheu mal os seus diversos e inexpressivos ministros da Educação. O MEC, como estrutura de gestão, esteve trancado nos últimos anos e deixou o país à deriva. O resultado disso é condenar uma geração a ter menos oportunidades de vida, particularmente os mais pobres, e o país a ter menos produtividade e pior cidadania no futuro.
Iniciativas como a do Todos Pela Educação têm pipocado noutros setores e estão sendo apresentadas à sociedade e aos políticos. Com certeza, é um processo essencial para que o Brasil adote um caminho condizente com os desafios de nosso tempo. Porém, o alcance dessas excelentes propostas pode ser bem menor, ou nem se efetivar, se não houver uma mobilização ampla da sociedade em torno delas, gritando a todos, em praça pública e com cobertura maciça da mídia, quais são as prioridades inadiáveis. E aqui entra a ideia de expandir o modelo das recentes cartas em defesa da democracia para alguns temas e ações centrais que nenhum governo pode abandonar.
A primeira característica dessa forma de mobilização social é dizer um “não” rotundo a certas práticas e ideias. São coisas que devem ser feitas obrigatoriamente e, se não forem, a sociedade vai às ruas, juntando da Febraban à UNE, da CUT à Fiesp. Claro que isso leva a ter um acordo básico em relação a menos pontos que os documentos de especialistas, que são mais detalhados e profundos. Mas, se houver o compromisso sobre o básico, mais chances haverá de as propostas mais sistêmicas e bem elaboradas serem adotadas em algum grau, provavelmente por um modelo incremental de mudanças.
O básico é definir que não se pode escolher um ministro da Educação sem experiência efetiva em políticas educacionais e que não defenda a escola pública, pois é preciso defender as crianças e jovens em situação mais vulnerável. Os últimos comandantes do MEC tinham horror à população mais pobre. Outro exemplo: se o ministro do Meio Ambiente não tiver um compromisso contra o desmatamento e pela proteção dos principais biomas, bem como pela defesa do Ibama, é preciso ler uma carta contrária a ele por vários dias até que seja demitido. Essa leitura deve ocorrer diariamente nos mais variados locais: no Congresso Nacional, nas praias mais lotadas do país, na Bolsa de Valores, no início de cada jogo do futebol brasileiro e nas universidades antes de qualquer aula.
No fundo, só é possível fazer uma mobilização social constante sobre poucos pontos. Eles devem ser acordados de forma bem ampla, para serem defendidos por políticos de diversos partidos e por muita gente com diferentes lugares na escala social. O espaço público, presencial ou virtual, será mais ocupado pelo grito contra qualquer barbaridade se não deixarmos que o essencial se torne banal.
Expandir o modelo de cartas mobilizadoras da sociedade tem um outro ganho: mostrar que as eleições são o ponto de partida da legitimidade política dos governantes, mas o processo democrático não pode parar aí. É preciso ter alarmes de incêndio que acendam mais rápido a cada decisão que fuja do mínimo indispensável para o país ser mais justo e civilizado. Não é aceitável ter um presidente da Fundação Palmares que cotidianamente coloque em questão a defesa dos direitos dos negros, fazendo troça da enorme desigualdade racial que há no país, como se ele fosse um senhor de engenho do século XIX. Não é possível ter um comandante da política cultural que transforme seu ofício numa forma de desmoralizar a classe artística. É inconcebível que a política ambiental seja liderada por quem quer acelerar o desmatamento e não acredita na mudança climática. É o fim do mundo ter um ministro do MEC que diga que nem todos podem ter o direito ao ensino superior, condenando assim os mais pobres a demorarem mais gerações para terem uma vida mais digna.
Em suma, não se pode ter gente no comando do país que não acredite nos consensos básicos das políticas públicas. Isso é o caminho para a barbárie, para a ridicularização do Brasil nos fóruns internacionais e para o retrocesso para a realidade pré-Constituição de 1988, quando efetivamente se garantiu que os brasileiros eram iguais entre si. Assim, todos deveriam se importar com a democracia e a economia, mas não podem deixar de lado o restante da ação governamental que é essencial para o desenvolvimento mais amplo do país. O futuro de nossos filhos e netos será melhor se tivermos refeições para todos, empregos e direito a voto, só que as pessoas querem mais do que isso. Como diria a icônica música dos Titãs: “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”.
A escolha pelos temas dessas Cartas mobilizadoras cabe à sociedade, a partir de um amplo debate e aproveitando o momento eleitoral. O cardápio de problemas é grande, mas é possível pensar em três questões essenciais para que o país tenha o mínimo indispensável ao desenvolvimento justo e sustentável. O primeiro é o combate a todas as formas de desigualdade (de renda, regional, racial e de gênero), principal empecilho para sermos uma nação minimamente decente, utilizando-se de políticas sociais bem geridas e voltadas a aumentar a equidade entre as pessoas e as famílias. O segundo é a defesa da questão ambiental como o principal ativo do Brasil para se produzir um novo ciclo de desenvolvimento, beneficiando as próximas gerações e melhorando a posição geopolítica brasileira. E, por fim, deve-se reforçar a tolerância e a diversidade como qualidades culturais e políticas que permitam o respeito mútuo e façam com que convivamos com nossas divergências sem perder o sentido comum de sermos brasileiros.
Os consensos básicos não apagam o fato de que há mais de uma maneira de combater a desigualdade ou alcançar a responsabilidade fiscal. Ademais, nem sempre sabemos de todas as soluções para os problemas públicos, de maneira que só com avaliações, debates e aprendizado com os erros nos tornamos mais capazes de avançar nas políticas públicas. De todo modo, cartas mobilizadoras da sociedade que partam do mais prioritário podem evitar que adotemos um caminho sem volta que nos afaste da resolução dos desafios do século XXI. Defender as eleições foi o primeiro passo; agora urge montar uma agenda mínima para gritarmos e evitarmos a criação de um país sem futuro.
A “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito”, documento-síntese da mobilização contra o golpismo, somou-se à pressão internacional (principalmente dos EUA), permitindo que o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, ganhasse o apoio necessário para que a Justiça não ficasse mais sozinha na luta contra os autoritários. Ainda há riscos democráticos caso Bolsonaro vença e tente o plano Orbán de expandir os poderes presidenciais e aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal. Será preciso criar instrumentos de monitoramento, com suporte social amplo e diverso, para acompanhar e evitar que a democracia se quebre sem que haja um golpe de Estado clássico.
Mantida a institucionalidade democrático-liberal, serão necessários outros passos para reconstruir políticas públicas destruídas nos últimos anos e colocar o país nos trilhos do século XXI. Esse processo exigirá diagnósticos técnicos sólidos sobre os principais temas nacionais, pois o custo do amadorismo e do negacionismo científico já foi muito alto e tende a se intensificar com a competição internacional e com a complexificação dos problemas em todo o mundo. Nessa linha de solução, documentos vindos de diversas áreas e com grande qualidade apareceram nos últimos meses. Eles deveriam ser lidos e discutidos obrigatoriamente por todos os candidatos e pelas pessoas preocupadas em melhorar o país.
Um exemplo disso é o “Educação Já”, documento preparado pelo Todos Pela Educação. Nele há um diagnóstico sistêmico da política educacional, mostrando que não há uma bala de prata para resolver as mazelas do ensino brasileiro e que, ao contrário, é preciso atuar em várias frentes. Essa proposta não se baseia apenas em estudos e evidências empíricas robustas. Ela se alimentou da experiência prática de um conjunto seleto de gestores que conhecem as enormes dificuldades para fazer reformas e construir políticas públicas efetivas. Assim, não basta saber o que fazer; é essencial saber como fazer.
O “Educação Já” está sendo apresentado para candidatos em todo o país e também será discutido com diversos setores sociais. O debate educacional é urgente porque os estudos revelam o desastre recente do país nessa área, com um retrocesso gigantesco durante a pandemia. O fato é que o governo Bolsonaro não apenas escolheu mal os seus diversos e inexpressivos ministros da Educação. O MEC, como estrutura de gestão, esteve trancado nos últimos anos e deixou o país à deriva. O resultado disso é condenar uma geração a ter menos oportunidades de vida, particularmente os mais pobres, e o país a ter menos produtividade e pior cidadania no futuro.
Iniciativas como a do Todos Pela Educação têm pipocado noutros setores e estão sendo apresentadas à sociedade e aos políticos. Com certeza, é um processo essencial para que o Brasil adote um caminho condizente com os desafios de nosso tempo. Porém, o alcance dessas excelentes propostas pode ser bem menor, ou nem se efetivar, se não houver uma mobilização ampla da sociedade em torno delas, gritando a todos, em praça pública e com cobertura maciça da mídia, quais são as prioridades inadiáveis. E aqui entra a ideia de expandir o modelo das recentes cartas em defesa da democracia para alguns temas e ações centrais que nenhum governo pode abandonar.
A primeira característica dessa forma de mobilização social é dizer um “não” rotundo a certas práticas e ideias. São coisas que devem ser feitas obrigatoriamente e, se não forem, a sociedade vai às ruas, juntando da Febraban à UNE, da CUT à Fiesp. Claro que isso leva a ter um acordo básico em relação a menos pontos que os documentos de especialistas, que são mais detalhados e profundos. Mas, se houver o compromisso sobre o básico, mais chances haverá de as propostas mais sistêmicas e bem elaboradas serem adotadas em algum grau, provavelmente por um modelo incremental de mudanças.
O básico é definir que não se pode escolher um ministro da Educação sem experiência efetiva em políticas educacionais e que não defenda a escola pública, pois é preciso defender as crianças e jovens em situação mais vulnerável. Os últimos comandantes do MEC tinham horror à população mais pobre. Outro exemplo: se o ministro do Meio Ambiente não tiver um compromisso contra o desmatamento e pela proteção dos principais biomas, bem como pela defesa do Ibama, é preciso ler uma carta contrária a ele por vários dias até que seja demitido. Essa leitura deve ocorrer diariamente nos mais variados locais: no Congresso Nacional, nas praias mais lotadas do país, na Bolsa de Valores, no início de cada jogo do futebol brasileiro e nas universidades antes de qualquer aula.
No fundo, só é possível fazer uma mobilização social constante sobre poucos pontos. Eles devem ser acordados de forma bem ampla, para serem defendidos por políticos de diversos partidos e por muita gente com diferentes lugares na escala social. O espaço público, presencial ou virtual, será mais ocupado pelo grito contra qualquer barbaridade se não deixarmos que o essencial se torne banal.
Expandir o modelo de cartas mobilizadoras da sociedade tem um outro ganho: mostrar que as eleições são o ponto de partida da legitimidade política dos governantes, mas o processo democrático não pode parar aí. É preciso ter alarmes de incêndio que acendam mais rápido a cada decisão que fuja do mínimo indispensável para o país ser mais justo e civilizado. Não é aceitável ter um presidente da Fundação Palmares que cotidianamente coloque em questão a defesa dos direitos dos negros, fazendo troça da enorme desigualdade racial que há no país, como se ele fosse um senhor de engenho do século XIX. Não é possível ter um comandante da política cultural que transforme seu ofício numa forma de desmoralizar a classe artística. É inconcebível que a política ambiental seja liderada por quem quer acelerar o desmatamento e não acredita na mudança climática. É o fim do mundo ter um ministro do MEC que diga que nem todos podem ter o direito ao ensino superior, condenando assim os mais pobres a demorarem mais gerações para terem uma vida mais digna.
Em suma, não se pode ter gente no comando do país que não acredite nos consensos básicos das políticas públicas. Isso é o caminho para a barbárie, para a ridicularização do Brasil nos fóruns internacionais e para o retrocesso para a realidade pré-Constituição de 1988, quando efetivamente se garantiu que os brasileiros eram iguais entre si. Assim, todos deveriam se importar com a democracia e a economia, mas não podem deixar de lado o restante da ação governamental que é essencial para o desenvolvimento mais amplo do país. O futuro de nossos filhos e netos será melhor se tivermos refeições para todos, empregos e direito a voto, só que as pessoas querem mais do que isso. Como diria a icônica música dos Titãs: “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”.
A escolha pelos temas dessas Cartas mobilizadoras cabe à sociedade, a partir de um amplo debate e aproveitando o momento eleitoral. O cardápio de problemas é grande, mas é possível pensar em três questões essenciais para que o país tenha o mínimo indispensável ao desenvolvimento justo e sustentável. O primeiro é o combate a todas as formas de desigualdade (de renda, regional, racial e de gênero), principal empecilho para sermos uma nação minimamente decente, utilizando-se de políticas sociais bem geridas e voltadas a aumentar a equidade entre as pessoas e as famílias. O segundo é a defesa da questão ambiental como o principal ativo do Brasil para se produzir um novo ciclo de desenvolvimento, beneficiando as próximas gerações e melhorando a posição geopolítica brasileira. E, por fim, deve-se reforçar a tolerância e a diversidade como qualidades culturais e políticas que permitam o respeito mútuo e façam com que convivamos com nossas divergências sem perder o sentido comum de sermos brasileiros.
Os consensos básicos não apagam o fato de que há mais de uma maneira de combater a desigualdade ou alcançar a responsabilidade fiscal. Ademais, nem sempre sabemos de todas as soluções para os problemas públicos, de maneira que só com avaliações, debates e aprendizado com os erros nos tornamos mais capazes de avançar nas políticas públicas. De todo modo, cartas mobilizadoras da sociedade que partam do mais prioritário podem evitar que adotemos um caminho sem volta que nos afaste da resolução dos desafios do século XXI. Defender as eleições foi o primeiro passo; agora urge montar uma agenda mínima para gritarmos e evitarmos a criação de um país sem futuro.
O mal estar do brasileiro
Todo dia tem uma nova tensão. A tensão está no ar. Medos, ódios e incertezas rodam a vida dos brasileiros. Com impulsos primitivos de violência.
Já sabemos que a queda do desemprego e da inflação, e a pequena melhoria na taxa de crescimento de 2022, são resultados com efeitos efêmeros. Efeitos efêmeros estão presentes também no orçamento da União. Aqui, assistimos ao conhecido truque fiscal do aumento da receita causado pela inflação. Combinado, agora, com o corte das despesas pelo congelamento dos salários do funcionalismo por dois anos, na pandemia. Efeitos efêmeros.
Já sabemos, também, que 2023 já está contratado. Deverá ser um ano muito difícil, de crescimento ainda menor do que em 2022 e de continuidade da polarização política. No plano fiscal, o Brasil deve arcar com uma conta adicional de R$ 430 bilhões em 2023, segundo a FGV/Ibre: 4,2% do PIB. A luz vermelha já está acesa e já se fala na providência de um “waiver” fiscal, ou seja, uma licença temporária das regras fiscais para organizar o orçamento. Pérsio Arida estima a necessidade de um “waiver” de R$ 100 bilhões.
Tudo somado, permanece predominante, aqui e agora, a sensação de mal estar dos brasileiros. O infortúnio maior é com a inflação de alimentos. Combinado com a incerteza sobre o como será o amanhã.
Há um grande desencanto e também grande revolta de muitos segmentos da população, como lembrou Christopher Garmam: “a geologia da opinião pública está podre” na América Latina (e no Brasil). Trata-se do problema recorrente da baixa qualidade dos serviços públicos e da falta de confiança nas instituições e nos políticos. Portanto, na Política.
A combinação do desencanto e da revolta com a continuidade do baixo crescimento torna 2023 um grande desafio para quem ganhar a eleição – seja a direita, seja a esquerda. Portanto, o que o país precisa é de um (novo) governo competente e realista. É grande o risco do Brasil reviver e aprofundar a sua realidade de “Belíndia” (a combinação de Bélgica com Índia, na imagem seminal de Edmar Bacha). E, assim, chegar ao extremo da anomia social, da violência e da ingovernabilidade. Estamos próximos dos limites da desigualdade e da pobreza, agora atenuada de maneira efêmera pelo Auxilio Emergencial.
Resta urgente que o debate presidencial precisa apontar saídas para o Brasil, de forma realista. Primeiro, e acima de tudo, o combate à fome e a pobreza, com inclusão produtiva. Missão número um. Segundo, educação e produtividade. Terceiro, a questão climática, para proteger e desenvolver a Amazônia de forma sustentável. O Brasil é uma potência alimentar e ambiental. Estas são três questões essenciais.
Conseguiremos superar o nosso mal estar dos brasileiros? Vamos lembrar que o “mal estar da civilização” (escrito em 1929 por Freud), se refere à teoria freudiana de que o conflito entre as regras sociais e as pulsões primitivas do homem seria a primeira causa dos distúrbios psicológicos daquele tempo. Agora, também? Distúrbios que resultam em medo, ódio e revolta.
Já sabemos que a queda do desemprego e da inflação, e a pequena melhoria na taxa de crescimento de 2022, são resultados com efeitos efêmeros. Efeitos efêmeros estão presentes também no orçamento da União. Aqui, assistimos ao conhecido truque fiscal do aumento da receita causado pela inflação. Combinado, agora, com o corte das despesas pelo congelamento dos salários do funcionalismo por dois anos, na pandemia. Efeitos efêmeros.
Já sabemos, também, que 2023 já está contratado. Deverá ser um ano muito difícil, de crescimento ainda menor do que em 2022 e de continuidade da polarização política. No plano fiscal, o Brasil deve arcar com uma conta adicional de R$ 430 bilhões em 2023, segundo a FGV/Ibre: 4,2% do PIB. A luz vermelha já está acesa e já se fala na providência de um “waiver” fiscal, ou seja, uma licença temporária das regras fiscais para organizar o orçamento. Pérsio Arida estima a necessidade de um “waiver” de R$ 100 bilhões.
Tudo somado, permanece predominante, aqui e agora, a sensação de mal estar dos brasileiros. O infortúnio maior é com a inflação de alimentos. Combinado com a incerteza sobre o como será o amanhã.
Há um grande desencanto e também grande revolta de muitos segmentos da população, como lembrou Christopher Garmam: “a geologia da opinião pública está podre” na América Latina (e no Brasil). Trata-se do problema recorrente da baixa qualidade dos serviços públicos e da falta de confiança nas instituições e nos políticos. Portanto, na Política.
A combinação do desencanto e da revolta com a continuidade do baixo crescimento torna 2023 um grande desafio para quem ganhar a eleição – seja a direita, seja a esquerda. Portanto, o que o país precisa é de um (novo) governo competente e realista. É grande o risco do Brasil reviver e aprofundar a sua realidade de “Belíndia” (a combinação de Bélgica com Índia, na imagem seminal de Edmar Bacha). E, assim, chegar ao extremo da anomia social, da violência e da ingovernabilidade. Estamos próximos dos limites da desigualdade e da pobreza, agora atenuada de maneira efêmera pelo Auxilio Emergencial.
Resta urgente que o debate presidencial precisa apontar saídas para o Brasil, de forma realista. Primeiro, e acima de tudo, o combate à fome e a pobreza, com inclusão produtiva. Missão número um. Segundo, educação e produtividade. Terceiro, a questão climática, para proteger e desenvolver a Amazônia de forma sustentável. O Brasil é uma potência alimentar e ambiental. Estas são três questões essenciais.
Conseguiremos superar o nosso mal estar dos brasileiros? Vamos lembrar que o “mal estar da civilização” (escrito em 1929 por Freud), se refere à teoria freudiana de que o conflito entre as regras sociais e as pulsões primitivas do homem seria a primeira causa dos distúrbios psicológicos daquele tempo. Agora, também? Distúrbios que resultam em medo, ódio e revolta.
sexta-feira, 26 de agosto de 2022
Carl Sagan (infelizmente) tinha razão
Há 27 anos, o astrofísico e grande divulgador da ciência Carl Sagan (1934-1996), conhecido mundialmente pela série de televisão Cosmos, lançou uma previsão extremamente acertada sobre o futuro, na qual parecia antecipar o auge das grandes tecnologias e da desinformação.
Ainda que a previsão dissesse respeito especificamente ao futuro dos Estados Unidos, os temas de que trata possuem um caráter mais universal; uma premonição geral da sociedade moderna.
Além de seu trabalho como astrônomo, cientista planetário, cosmólogo, astrofísico, astrobiólogo e promotor da ciência, Sagan também era um escritor prolífico. Em 1995, publicou O mundo assombrado pelos demônios: A ciência vista como uma vela no escuro, no qual aborda desde questões espirituais até desmentidos sobre abduções alienígenas.
Mas, bem além desses temas, seu livro constrói uma defesa apaixonada da ciência e do método científico, e explica como ela ajudou a iluminar muitos dos rincões mais sombrios do universo. Dessa forma, o astrofísico demonstra como a busca pela paz e pela verdade era minada por dois velhos conhecidos da humanidade: a superstição e a pseudociência.
Hoje, passados 27 anos da publicação da obra, o que mais chama a atenção nas redes sociais é uma passagem descritiva na qual Sagan faz uma previsão sobre futuro dos Estados Unidos, inquietantemente similar à realidade em que se vive.
Ainda que Sagan costumasse projetar visões otimistas, o trecho descreve uma possível sociedade distópica, repleta de divisão, confusão, desconfiança nas autoridades e uma separação cada vez maior entre os mais ricos e os mais pobres, sob lideranças cada vez mais autoritárias.
No capítulo em questão, Sagan trata, ainda, de alguns fenômenos culturais americanos da época, como o programa de televisão Beavis e Butthead e o filme Debi e Lóide, que ele considerava exemplos da decadência intelectual nos EUA:
Pode-se apenas imaginar qual seria sua opinião sobre o futuro dos Estados Unidos se ele estivesse vivo hoje e testemunhasse o fenômeno das novas redes sociais, desde o YouTube e o Instagram até a ascensão vertiginosa dos serviços de streaming, entre outros.
Muitos, talvez, considerem que a previsão feita há 27 anos não seja realmente uma revelação, e estão, provavelmente, corretos, uma vez que vislumbrar um futuro distópico não é especialmente complicado.
Mesmo assim, Sagan, com sua grande sensibilidade e inteligência, foi capaz de captar grande parte da essência das mudanças que começavam a se formar naquela época, e que hoje parecem óbvias. Escutar as vozes do passado pode ajudar a recordar e refletir mais sobre o que se pode melhorar na sociedade atual.
Ainda que a previsão dissesse respeito especificamente ao futuro dos Estados Unidos, os temas de que trata possuem um caráter mais universal; uma premonição geral da sociedade moderna.
Além de seu trabalho como astrônomo, cientista planetário, cosmólogo, astrofísico, astrobiólogo e promotor da ciência, Sagan também era um escritor prolífico. Em 1995, publicou O mundo assombrado pelos demônios: A ciência vista como uma vela no escuro, no qual aborda desde questões espirituais até desmentidos sobre abduções alienígenas.
Mas, bem além desses temas, seu livro constrói uma defesa apaixonada da ciência e do método científico, e explica como ela ajudou a iluminar muitos dos rincões mais sombrios do universo. Dessa forma, o astrofísico demonstra como a busca pela paz e pela verdade era minada por dois velhos conhecidos da humanidade: a superstição e a pseudociência.
Hoje, passados 27 anos da publicação da obra, o que mais chama a atenção nas redes sociais é uma passagem descritiva na qual Sagan faz uma previsão sobre futuro dos Estados Unidos, inquietantemente similar à realidade em que se vive.
"A ciência é mais do que um conjunto de conhecimentos, é uma forma de pensar. Tenho um pressentimento sobre uma América, na época dos meus netos ou bisnetos, quando os EUA serão uma economia de serviços e informação; quando quase todas as principais indústrias de manufatura terão escapado para outros países; quando impressionantes poderes tecnológicos estarão nas mãos de alguns poucos, e ninguém que represente os interesses públicos conseguir compreender os problemas; quando os seres humanos tiverem perdido a capacidade de estabelecer seus próprios objetivos ou de questionar com conhecimento de causa os que detêm a autoridade; quando, apegados aos nossos cristais e consultando nervosamente nossos horóscopos, com nossas faculdades mentais 3m declínio, incapazes de distinguir entre o que nos faz sentir bem e o que é verdade, retrocedemos, quase sem perceber, à superstição e às trevas."
Ainda que Sagan costumasse projetar visões otimistas, o trecho descreve uma possível sociedade distópica, repleta de divisão, confusão, desconfiança nas autoridades e uma separação cada vez maior entre os mais ricos e os mais pobres, sob lideranças cada vez mais autoritárias.
No capítulo em questão, Sagan trata, ainda, de alguns fenômenos culturais americanos da época, como o programa de televisão Beavis e Butthead e o filme Debi e Lóide, que ele considerava exemplos da decadência intelectual nos EUA:
"O emburrecimento dos Estados Unidos é mais evidente na lenta degradação dos conteúdos substanciais na mídia enormemente influente, nas frases de efeito de 30 segundos (agora reduzidas a dez segundos ou menos), as programações baseadas no mínimo denominador comum, apresentações crédulas sobre pseudociência e superstição, mas, sobretudo, numa espécie de celebração da ignorância."
Pode-se apenas imaginar qual seria sua opinião sobre o futuro dos Estados Unidos se ele estivesse vivo hoje e testemunhasse o fenômeno das novas redes sociais, desde o YouTube e o Instagram até a ascensão vertiginosa dos serviços de streaming, entre outros.
Muitos, talvez, considerem que a previsão feita há 27 anos não seja realmente uma revelação, e estão, provavelmente, corretos, uma vez que vislumbrar um futuro distópico não é especialmente complicado.
Mesmo assim, Sagan, com sua grande sensibilidade e inteligência, foi capaz de captar grande parte da essência das mudanças que começavam a se formar naquela época, e que hoje parecem óbvias. Escutar as vozes do passado pode ajudar a recordar e refletir mais sobre o que se pode melhorar na sociedade atual.
quinta-feira, 25 de agosto de 2022
O Khmer verde e amarelo na segurança pública
O Brasil vive um período, na segurança pública que, a título de ilustração, lembra o governo do Khmer Vermelho, quando nos anos 1970 levou o Camboja a um desmantelamento geral que devolveu o país à Idade Média.
A ideia era recomeçar, de uma fase agrária pré-capitalista. O ditador Pol Pot negou a ciência e a medicina, baniu professores e artistas, queimou livros, armou milícias civis, espalhou preconceito e discórdia, enquanto ‘fechava os olhos’ ao tráfico de madeira, minerais preciosos e drogas.
As propostas dos(a) candidatos(a) de oposição a Presidente do Brasil, para a segurança pública, divulgadas recentemente, revelam um quadro preocupante (o principal programa das candidaturas é a reativação do Sistema Único de Segurança Pública).
Considerando que o SUSP já havia sido criado em 2018, a proposição consensual da oposição de recolocá-lo em funcionamento significa que o País engavetou a estratégia nacional de segurança pública.
A rigor, não há exagero na afirmação, levando em conta a política de vale tudo, que promove a liberação das armas de fogo, a cultura de agressividade, a tolerância com a violência policial, com o desmatamento, com o garimpo ilegal e com a grilagem.
O quadro preocupa ainda mais ao se constatar que a proposta do candidato à reeleição não passa de um aprofundamento dessa antipolítica de segurança (ou seria uma política de insegurança?).
Ao sair do poder no Camboja, apenas quatro anos depois de assumir, Pol Pot deixou mais de um milhão de mortos por assassinato, epidemias e pobreza, sem falar no desemprego, atraso, devastação ambiental e descrédito internacional.
No Brasil, quando se soma o abandono da política de segurança pública (SUSP) com o desmonte dos instrumentos de regulação e fiscalização na Amazônia, o resultado é uma explosão dos índices de violência da região que espantaria até os cambojanos.
“Praticamente todos os 10 municípios com taxas superiores a 100 homicídios/ 100 mil hab. estão […] próximos a Terras Indígenas e fronteiras”. (fonte: Anuário Brasileiro da Segurança Pública 2022 – Amazônia como síntese da violência extrema).
Nesse cenário, é importante que o Brasil tenha consciência de que, no Camboja, houve ajuda externa. A China ajudou o Khmer Vermelho, assim como o Ocidente e seus aliados ajudaram os governos seguintes.
No caso do Brasil, ao contrário, os retrocessos contaram apenas com o patrocínio e a concordância de brasileiros. Da mesma forma, a recuperação vai exigir vontade e esforço tão somente da sociedade brasileira, das suas instituições e dos seus representantes.
A ideia era recomeçar, de uma fase agrária pré-capitalista. O ditador Pol Pot negou a ciência e a medicina, baniu professores e artistas, queimou livros, armou milícias civis, espalhou preconceito e discórdia, enquanto ‘fechava os olhos’ ao tráfico de madeira, minerais preciosos e drogas.
As propostas dos(a) candidatos(a) de oposição a Presidente do Brasil, para a segurança pública, divulgadas recentemente, revelam um quadro preocupante (o principal programa das candidaturas é a reativação do Sistema Único de Segurança Pública).
Considerando que o SUSP já havia sido criado em 2018, a proposição consensual da oposição de recolocá-lo em funcionamento significa que o País engavetou a estratégia nacional de segurança pública.
A rigor, não há exagero na afirmação, levando em conta a política de vale tudo, que promove a liberação das armas de fogo, a cultura de agressividade, a tolerância com a violência policial, com o desmatamento, com o garimpo ilegal e com a grilagem.
O quadro preocupa ainda mais ao se constatar que a proposta do candidato à reeleição não passa de um aprofundamento dessa antipolítica de segurança (ou seria uma política de insegurança?).
Ao sair do poder no Camboja, apenas quatro anos depois de assumir, Pol Pot deixou mais de um milhão de mortos por assassinato, epidemias e pobreza, sem falar no desemprego, atraso, devastação ambiental e descrédito internacional.
No Brasil, quando se soma o abandono da política de segurança pública (SUSP) com o desmonte dos instrumentos de regulação e fiscalização na Amazônia, o resultado é uma explosão dos índices de violência da região que espantaria até os cambojanos.
“Praticamente todos os 10 municípios com taxas superiores a 100 homicídios/ 100 mil hab. estão […] próximos a Terras Indígenas e fronteiras”. (fonte: Anuário Brasileiro da Segurança Pública 2022 – Amazônia como síntese da violência extrema).
Nesse cenário, é importante que o Brasil tenha consciência de que, no Camboja, houve ajuda externa. A China ajudou o Khmer Vermelho, assim como o Ocidente e seus aliados ajudaram os governos seguintes.
No caso do Brasil, ao contrário, os retrocessos contaram apenas com o patrocínio e a concordância de brasileiros. Da mesma forma, a recuperação vai exigir vontade e esforço tão somente da sociedade brasileira, das suas instituições e dos seus representantes.
'A floresta produz mais riqueza do que o gado'
Em uma pequena vala no meio do pasto, Claudia dos Santos para o carro. Na beira do caminho, há uma grande cruz de madeira e, ao lado, os restos de uma placa de pedra destruída. "Eles atiraram nela", conta Santos. "O nome do meu tio e da minha tia estavam gravados na pedra. Até hoje somos ameaçados porque protegemos a floresta."
A jovem de 20 anos é sobrinha de José Cláudio Ribeiro, que junto com sua mulher, Maria do Espírito Santo, foi alvejado por dois pistoleiros neste local. O casal liderava uma comunidade extrativista no sudeste do Pará. Os extrativistas coletam e processam frutos da Amazônia, são os agricultores da floresta. Mas o Pará vem sendo desmatado a um ritmo raramente visto em outros lugares do Brasil. José Cláudio e Maria resistiam à destruição e denunciavam madeireiros e pecuaristas ilegais. Até esse contra-ataque brutal.
Um dos pistoleiros foi condenado, assim como dois dos mandantes. Porém, o assassino conseguiu fugir da prisão, e um dos mandantes – um pecuarista que estava de olho em terras da reserva – escapou da polícia. "Vivemos com medo", afirma Claudia dos Santos.
O Pará abriga a segunda maior porção da Amazônia brasileira. Mas madeireiros, pecuaristas, sojeiros e garimpeiros ilegais avançam há anos sobre a floresta, invadindo áreas protegidas, reservas indígenas e territórios de extrativistas. Desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, em 2019, eles ficaram mais agressivos. O número de conflitos por terras no Pará é extremamente alto – ambientalistas, indígenas e comunidades tradicionais vivem perigosamente.
O termo extrativismo descreve a coleta de frutos que a natureza oferece. A prática é uma resposta importante para a pergunta sobre como é possível viver na região da Floresta Amazônica sem destruir o meio ambiente. "Meu tio e minha tia provaram que o extrativismo funciona", afirma Santos. "Por isso, eles precisaram morrer. Eles mostraram que uma floresta intacta produz mais riqueza do que o gado."
A jovem cresceu numa família de quatro integrantes na comunidade Praia Alta-Piranheira, famosa por suas castanhas-do-pará e que, em 1997, foi declarada reserva agroextrativista pelo Estado. José Cláudio Ribeiro e sua esposa desempenharam um importante papel para que isso ocorresse. Contudo, a demarcação não impediu madeireiros e pecuaristas de continuar invadindo os 22 mil hectares de área protegida. O Estado está em grande parte ausente na Amazônia e, em várias regiões, o que vale é a lei do mais forte.
Há também uma guerra cultural no Pará. Em muitas partes do Brasil, a natureza ainda é considerada algo atrasado e importuno, que deve ser domado e de preferência eliminado para abrir espaço para o desenvolvimento econômico. Bolsonaro encarna esse ponto de vista por excelência, ele fala de "árvores de merda" e defende garimpeiros e madeireiros ilegais. Para ele, aqueles que defendem a floresta são baderneiros. Os recordes de desmatamento na Amazônia sob o governo Bolsonaro não são uma coincidência.
Depois dos assassinatos de José Cláudio e Maria, Santos e sua mãe, que também recebeu ameaças de morte, se mudaram para Marabá, que fica a duas horas e meia de carro da reserva. Lá Santos estuda e trabalha no instituto Zé Cláudio e Maria – uma ONG fundada por sua mãe para ajudar a manter de pé a luta por Justiça e a memória dos mártires socioambientais.
Nesta tarde, ela vai à reserva para visitar a tia, Claudecir dos Santos, que deu continuidade à tradição do extrativismo. Depois de um longo trajeto numa estrada de terra e ao longo de pastagens, ela chega à área protegida, fácil de reconhecer devido à mata fechada. Para recebê-la, Claudecir matou uma galinha que prepara num fogão à lenha numa cozinha aberta. "Estou satisfeita com a minha vida", diz a viúva de 57 anos.
Na manhã seguinte, a mulher pequena e musculosa entra na floresta com um facão e uma cesta nas costas – cerca de 30 hectares de mata pertencem ao seu quintal. Ela conta que há quatro ou cinco frutos que a ajudam a ganhar a vida.
Em primeiro lugar, está a castanha-do-pará. Elas crescem em castanheiras e, em ouriços que parecem balas de canhão, as castanhas amadurecem envoltas cada uma em uma casca dura. A castanha-do-pará não pode ser cultivada em plantações, ela dá apenas na floresta. Essa é uma das razões para o alto preço de venda desse produto no mercado. Nutritivas, as castanhas possuem um elevado teor de proteína e gordura, além de muitos minerais.
Cada uma das dezenas de castanheiras na floresta produz por safra castanhas no valor de cerca de R$ 500, segundo Claudecir. Ela acrescenta que, ao longo dos anos, isso rende muito mais do que se derrubassem a árvore e vendessem sua valiosa madeira. Apesar de o corte da espécie ser proibido pela legislação brasileira, madeireiros continuam derrubando castanheiras. Eles simplesmente declararam a madeira como de outro tipo.
Igualmente importante para a renda de Claudecir é a andiroba, de cujas sementes é extraído um valioso óleo, que tem efeitos antissépticos e é usado na fabricação de sabonetes. Em sua oficina, Claudecir mostra como funciona o processo de extração do óleo. Ela se uniu com outras mulheres da reserva numa cooperativa para comercializarem juntas o óleo.
Açaí, cacau e cupuaçu também são coletados e vendidos. Já mamão, manga e limão são para consumo próprio. Além disso, Claudecir planta mandioca, feijão, cana-de-açúcar e ervilha. O quintal dela parece um paraíso autossuficiente. Mas é claro que não cresce tudo que é necessário para viver na floresta.
Claudecir, que recebe ajuda de um irmão mais novo para cuidar da plantação, compra açúcar, sal, arroz, café e óleo na cidade. "Mas eu não gosto da cidade", diz. "A floresta me dá tudo que eu preciso. Ver como ela é viva me dá coragem. Apesar de tudo."
Faz dois anos que a mãe de Claudecir, que vive em Marabá, recebeu uma carta na qual estava escrito com letras recortadas: "Vamos acabar com o resto da família". E essa não foi a única ameaça.
Ao anoitecer, vestindo jeans e chinelos de dedo, Claudia dos Santos atravessa um riacho do qual vem a água usada por sua tia. As cigarras já começaram com sua cantoria ensurdecedora, e longe um grupo de bugios grita. Santos senta embaixo de uma castanheira imponente, que emerge para o céu de uma clareira. A idade da poderosa árvore é estimada entre 350 e 400 anos, ela conta. Sua família a batizou com o nome de Majestade. "Eu venho aqui para encontrar minha paz. Essa clareira é minha catedral."
Santos conta que há dois anos, na volta de uma visita à reserva com uma amiga, elas foram seguidas por uma pick-up com luz alta que chegava cada vez mais perto. "Entramos em pânico e aceleramos até que nosso carro quase capotou numa curva." A jovem acredita que um pecuarista que tem uma fazenda na divisa com a reserva esteja por trás do episódio.
O extrativismo, como o praticado por Claudecir e sua família, é uma provocação. A economia predominante na região é a pecuária, que também se espalhou pela reserva extrativista. De 400 famílias que moram no local, apenas 20 ainda praticam a silvicultura. As outras possuem gado, o que contradiz o objetivo da reserva, mas é a realidade.
"Querem lucro rápido. Pensam que só os que têm gado contam", afirma Suena Nascimento, de 28 anos, que é professora numa escola rural e presidente do coletivo de extrativistas do qual 15 mulheres fazem parte.
"Nós, mulheres, pensamos a longo prazo", afirma a professora. "Algumas famílias que começaram a criar gado já se arrependeram", diz, apontando que elas não calcularam os custos de fertilizantes para as pastagens, ração, vacinas e outros. "As primeiras a mudar de ideia são as mulheres. Os homens precisam de mais tempo. Mas o mais tardar quando a água se torna escassa e o solo esgotado, eles percebem que algo não vai bem. É preciso se aliar à natureza para sobreviver na Amazônia", ressalta.
A jovem de 20 anos é sobrinha de José Cláudio Ribeiro, que junto com sua mulher, Maria do Espírito Santo, foi alvejado por dois pistoleiros neste local. O casal liderava uma comunidade extrativista no sudeste do Pará. Os extrativistas coletam e processam frutos da Amazônia, são os agricultores da floresta. Mas o Pará vem sendo desmatado a um ritmo raramente visto em outros lugares do Brasil. José Cláudio e Maria resistiam à destruição e denunciavam madeireiros e pecuaristas ilegais. Até esse contra-ataque brutal.
Um dos pistoleiros foi condenado, assim como dois dos mandantes. Porém, o assassino conseguiu fugir da prisão, e um dos mandantes – um pecuarista que estava de olho em terras da reserva – escapou da polícia. "Vivemos com medo", afirma Claudia dos Santos.
A castanha-do-pará não pode ser cultivada em plantações, ela dá apenas na floresta |
O Pará abriga a segunda maior porção da Amazônia brasileira. Mas madeireiros, pecuaristas, sojeiros e garimpeiros ilegais avançam há anos sobre a floresta, invadindo áreas protegidas, reservas indígenas e territórios de extrativistas. Desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, em 2019, eles ficaram mais agressivos. O número de conflitos por terras no Pará é extremamente alto – ambientalistas, indígenas e comunidades tradicionais vivem perigosamente.
O termo extrativismo descreve a coleta de frutos que a natureza oferece. A prática é uma resposta importante para a pergunta sobre como é possível viver na região da Floresta Amazônica sem destruir o meio ambiente. "Meu tio e minha tia provaram que o extrativismo funciona", afirma Santos. "Por isso, eles precisaram morrer. Eles mostraram que uma floresta intacta produz mais riqueza do que o gado."
A jovem cresceu numa família de quatro integrantes na comunidade Praia Alta-Piranheira, famosa por suas castanhas-do-pará e que, em 1997, foi declarada reserva agroextrativista pelo Estado. José Cláudio Ribeiro e sua esposa desempenharam um importante papel para que isso ocorresse. Contudo, a demarcação não impediu madeireiros e pecuaristas de continuar invadindo os 22 mil hectares de área protegida. O Estado está em grande parte ausente na Amazônia e, em várias regiões, o que vale é a lei do mais forte.
Há também uma guerra cultural no Pará. Em muitas partes do Brasil, a natureza ainda é considerada algo atrasado e importuno, que deve ser domado e de preferência eliminado para abrir espaço para o desenvolvimento econômico. Bolsonaro encarna esse ponto de vista por excelência, ele fala de "árvores de merda" e defende garimpeiros e madeireiros ilegais. Para ele, aqueles que defendem a floresta são baderneiros. Os recordes de desmatamento na Amazônia sob o governo Bolsonaro não são uma coincidência.
Depois dos assassinatos de José Cláudio e Maria, Santos e sua mãe, que também recebeu ameaças de morte, se mudaram para Marabá, que fica a duas horas e meia de carro da reserva. Lá Santos estuda e trabalha no instituto Zé Cláudio e Maria – uma ONG fundada por sua mãe para ajudar a manter de pé a luta por Justiça e a memória dos mártires socioambientais.
Nesta tarde, ela vai à reserva para visitar a tia, Claudecir dos Santos, que deu continuidade à tradição do extrativismo. Depois de um longo trajeto numa estrada de terra e ao longo de pastagens, ela chega à área protegida, fácil de reconhecer devido à mata fechada. Para recebê-la, Claudecir matou uma galinha que prepara num fogão à lenha numa cozinha aberta. "Estou satisfeita com a minha vida", diz a viúva de 57 anos.
Na manhã seguinte, a mulher pequena e musculosa entra na floresta com um facão e uma cesta nas costas – cerca de 30 hectares de mata pertencem ao seu quintal. Ela conta que há quatro ou cinco frutos que a ajudam a ganhar a vida.
Em primeiro lugar, está a castanha-do-pará. Elas crescem em castanheiras e, em ouriços que parecem balas de canhão, as castanhas amadurecem envoltas cada uma em uma casca dura. A castanha-do-pará não pode ser cultivada em plantações, ela dá apenas na floresta. Essa é uma das razões para o alto preço de venda desse produto no mercado. Nutritivas, as castanhas possuem um elevado teor de proteína e gordura, além de muitos minerais.
Cada uma das dezenas de castanheiras na floresta produz por safra castanhas no valor de cerca de R$ 500, segundo Claudecir. Ela acrescenta que, ao longo dos anos, isso rende muito mais do que se derrubassem a árvore e vendessem sua valiosa madeira. Apesar de o corte da espécie ser proibido pela legislação brasileira, madeireiros continuam derrubando castanheiras. Eles simplesmente declararam a madeira como de outro tipo.
Igualmente importante para a renda de Claudecir é a andiroba, de cujas sementes é extraído um valioso óleo, que tem efeitos antissépticos e é usado na fabricação de sabonetes. Em sua oficina, Claudecir mostra como funciona o processo de extração do óleo. Ela se uniu com outras mulheres da reserva numa cooperativa para comercializarem juntas o óleo.
Açaí, cacau e cupuaçu também são coletados e vendidos. Já mamão, manga e limão são para consumo próprio. Além disso, Claudecir planta mandioca, feijão, cana-de-açúcar e ervilha. O quintal dela parece um paraíso autossuficiente. Mas é claro que não cresce tudo que é necessário para viver na floresta.
Claudecir, que recebe ajuda de um irmão mais novo para cuidar da plantação, compra açúcar, sal, arroz, café e óleo na cidade. "Mas eu não gosto da cidade", diz. "A floresta me dá tudo que eu preciso. Ver como ela é viva me dá coragem. Apesar de tudo."
Faz dois anos que a mãe de Claudecir, que vive em Marabá, recebeu uma carta na qual estava escrito com letras recortadas: "Vamos acabar com o resto da família". E essa não foi a única ameaça.
Ao anoitecer, vestindo jeans e chinelos de dedo, Claudia dos Santos atravessa um riacho do qual vem a água usada por sua tia. As cigarras já começaram com sua cantoria ensurdecedora, e longe um grupo de bugios grita. Santos senta embaixo de uma castanheira imponente, que emerge para o céu de uma clareira. A idade da poderosa árvore é estimada entre 350 e 400 anos, ela conta. Sua família a batizou com o nome de Majestade. "Eu venho aqui para encontrar minha paz. Essa clareira é minha catedral."
Santos conta que há dois anos, na volta de uma visita à reserva com uma amiga, elas foram seguidas por uma pick-up com luz alta que chegava cada vez mais perto. "Entramos em pânico e aceleramos até que nosso carro quase capotou numa curva." A jovem acredita que um pecuarista que tem uma fazenda na divisa com a reserva esteja por trás do episódio.
O extrativismo, como o praticado por Claudecir e sua família, é uma provocação. A economia predominante na região é a pecuária, que também se espalhou pela reserva extrativista. De 400 famílias que moram no local, apenas 20 ainda praticam a silvicultura. As outras possuem gado, o que contradiz o objetivo da reserva, mas é a realidade.
"Querem lucro rápido. Pensam que só os que têm gado contam", afirma Suena Nascimento, de 28 anos, que é professora numa escola rural e presidente do coletivo de extrativistas do qual 15 mulheres fazem parte.
"Nós, mulheres, pensamos a longo prazo", afirma a professora. "Algumas famílias que começaram a criar gado já se arrependeram", diz, apontando que elas não calcularam os custos de fertilizantes para as pastagens, ração, vacinas e outros. "As primeiras a mudar de ideia são as mulheres. Os homens precisam de mais tempo. Mas o mais tardar quando a água se torna escassa e o solo esgotado, eles percebem que algo não vai bem. É preciso se aliar à natureza para sobreviver na Amazônia", ressalta.
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