O caminho do rio é aquele que suas margens permitem. O rio é um país, a maioria do povo; as margens, as elites políticas – à esquerda ou à direita –, radicalizadas tomando para si o leito do rio. Não se sabe se, ao longo de seu percurso, o rio transbordará, ultrapassando os limites de suas margens; ou se as margens estreitarão ainda mais a passagem do rio, fazendo o fluxo, antes caudaloso, cessar, virar seca. Ninguém sabe se as chuvas trarão novas águas, revitalizando as nascentes. O que se sabe é que o desafio do rio é não se deixar morrer pela opressão das margens.
Numa das curvas do rio, muita coisa para, mas nada mais é de estarrecer: a entrevista de Roberto Jefferson, concedida a Luciana Nunes Leal, no Estadão, é um primor desse realismo hidrográfico: um cotovelo de encanamento, onde as impurezas estacionam. Nela, o ex-deputado revela-escancara a incapacidade de o sistema político atual gerar qualquer fruto saudável. O embate nacional se resume, assim, a um duelo entre “bandidos”. E “o bandido pelo qual mais torço”, diz Jefferson, ”é Eduardo Cunha”.
Ainda sobre o mensalão, quem também voltou aos holofotes neste 1º de abril foi o ex-deputado Roberto Jefferson, “homem-bomba” do esquema que levou a cúpula do PT à prisão. Depois de cumprir sua pena, o político mostra que, em meio à crise que assola o governo, ele tem lado: “Cunha é o bandido que eu mais gosto”. Leia a entrevista completa aqui:
A crise é grave quando se percebe que não há mais mocinhos por quem torcer. A franqueza cortante de Jefferson é reveladora: os “esquemas”, o fisiologismo, o clientelismo e a corrupção esgotaram o rio. O ex-deputado sabe o que diz: vivenciou, negociou e confraternizou; seus amigos e inimigos íntimos, em quase todos os partidos, não são muito diferentes de Eduardo Cunha.
Acontece que, assim como a esperteza, o fisiologismo cresce e come o esperto; a voracidade por cargos, recursos e esquemas nos trouxe a este precipício. E ninguém escapa dessa vertigem. Roberto Jefferson é um desses personagens insólitos: constrangedoramente franco, bruto no revelar e revelar-se – cruel e impávido como Muhammad Ali. O fato é que não cala: rasga o peito, aponta o dedo e indica dá sua lição sobre a realpolitik nacional.
E assim, revela: o esquema cresceu, é gigante; pode-se dizer que não foi criação do PT. O partido apenas ousou se acreditar seu maior beneficiário. Resultou como um operador desastrado: “malando é malandro, mané é mané”. O poder, o poder… O poder que justifica a si mesmo. Até aqui, nenhum capitão de partido veio desmentir Jefferson. O silêncio é revelador.
Quem perde com isso é, antes de tudo, a própria política, desacreditada como um rio que se transformou em esgoto, em que se liquida a vida, numa crise sem fim.
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Nos últimos dias, usando os instrumentos de que dispõe – cargos e promessas –, o governo voltou a acender as luzes de sua esperança. Mas, também revelou o “lado Jefferson” da situação: o oportunismo, ao contrário dos rios, não conhece limites. Aliado decidiram que decidiriam somente às vésperas da votação. Claro: capta-se antes humor das ruas. Mas, ao mesmo tempo, com o maior o desespero do governo, aumentam os preços. Num momento dramático, tudo que o oportunista quer é ser o voto de desempate.
Dilma insiste no vício que lhe consumiu, sem compreender que essas moedas só conhecem valorização na venda. Raposas espertas esperam pacientemente o cansaço da caça. Ansiosa, Dilma tende a pagar por aquilo que nunca poderá resgatar.
Ao mesmo tempo, o elemento Carbono 14, espécie de superbomba dos elos perdidos. Assim como Jefferson, os implicados da vez não são de ficar de bico fechado – só que ao contrário. Ensaia-se, então, o horror sem fim. Nem bem o Carbono 14 se espalha, o ar é rapidamente consumido por uns tais Papéis do Panamá. Na vertigem da crise, tudo tão rápido, assaz complexo e difícil de controlar.
A sorte de Dilma é que, por enquanto, o impeachment não tenha um rosto aceitável. Sua cara será a face de Michel Temer: seu apelo político pequeno; Renan Calheiros, Eduardo Cunha? Ou do PSDB, aliás, desaparecido? Qual o rosto do impeachment? O processo fica, assim, ainda mais volátil, menos linear e previsível; ziguezagueiam, serpenteiam fantasias e ressentimentos; avanços, retrocessos distribuem surpresas e insegurança.
A incerteza da crise aprofunda a própria crise; o suspense coloca o dedo no gatilho das delações premiadas. A confusão só cresce. E nada leva a crer num “dia depois de amanhã” positivo. A presidente, esqueçam, não retomará o controle do processo politico ou econômico, tampouco Lula voltará ao que era antes.
E Michel Temer, bem, partindo de bases políticas tão oscilantes, terá muita dificuldade para consolidar um governo à altura do desafio. Acresça ao quadro a situação dos bancos, se tiverem que contabilizar a Odebrecht como prejuízo. O Brasil olha para o inferno e o diabo lhe sorri.
Daí manifestações como o Editorial da Folha, do domingo, 03; daí notícias que apontam que no STF, mesmo os ministros simpáticos ao governo já admitem a precariedade da presidente; daí setores do PT vislumbrarem a necessidade do diálogo (Estadão); dai o silêncio do PSDB. Daí a tese de uma nova eleição. Como diz o Gato de Alice, “para quem não sabe onde ir, qualquer caminho é bom. Ninguém sabe a saída do labirinto.
É possível que a linha do impeachment, como solução para o impasse, já tenha sido ultrapassada; que a postura de Lula e Dilma – revivendo fantasmas de “golpes” – tenha mandado a responsabilidade às favas. Que a festa do PMDB aclamando Temer no rompimento com o governo tenha precipitado a prematura reprovação ao seu governo que ainda nem começou – e, realmente, como observou o ministro Barroso à foto do dia seguinte, “meu deus do céu…”
É possível que a irresponsabilidade, a voracidade e o descrédito tenham mesmo fechado as portas das saídas institucionais mais previsíveis. É possível que o rio tenha passado do ponto e, agora, a saída, que e se houver, só poderá vir pelas mão da política.
Ou isto ou o precipício da desagregação, o conflito pelas vias de fato que as duas margens, sem cerimônia, já admitem e que implica no esmagamento do rio. Chamemos a esta hipótese de “a via Voldemort” – “aquele que não deve ser nominado”.
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Agrava a crise o fato de grande parte da sociedade forjar um embate de surdos, acreditando que o melhor lugar do mundo é a margem do rio em que se acredita estar. Nega-se a politica, a possibilidade de consenso – o que não significa “acordão” — e, aos poucos, as classes médias vestem-se para a guerra. Com qual objetivo? Ao final, não percebem que as pedras que lançam não chegam à outra margem e a quem ferem, de fato, é ao rio.
Psicanalista, Contardo Calligaris acertou na alma da questão quando disse que “em geral, nosso interlocutor só quer saber de que lado nós estamos”. E se não estamos ao seu lado, somos sua negação. Lógica cartesiana: “pensas diferente, logo não deves existir”; não há espaço para nuances ou mediações.
Pior que os riscos econômico e político da crise, este comportamento fere a democracia nas relações mais íntimas, machucando a liberdade na sua essência: no convívio e na tolerância. Sem tolerância, não há liberdade, nem democracia. Sequer haverá justiça.
Quem não dança essa música leva as pedras dos dois lados: (tentar) compreender e explicar o processo é luta vã: “meu chapa, você capitulou ao outro lado”. Que lado? O princípio básico da análise está em Spinoza: “nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento”. Nada mais estúpido que o pensamento binário, maniqueísta: ou o riso ou a lágrima. Expurgar o entendimento da vida política, com efeito, é mesmo de rir ou de chorar.
Erro tremendo desprezar o rio. Considerá-lo não implica em omissão, mas em perceber que, no fundo, ainda se é rio; e que o rio precisa seguir, num consenso, com menor opressão das margens. Ser margem é escolha; ser rio é condição. Pessoalmente, respondo às margens: “é fácil concordar com o que dizem a respeito uma da outra; o difícil é engolir o que pensam a respeito de si próprias”. Sigo no caminho do meio, transformando as águas do rio e sendo transformado por elas.
Carlos Melo
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