segunda-feira, 5 de agosto de 2024

A mentira voa, a verdade coxeia

Os episódios de violência baseados na difusão de falsidades não começaram agora. Há uma história longa de notícias falsas potenciarem movimentos de violência coletiva ou condenações judiciais infundadas, invariavelmente com o racismo e a xenofobia como panos de fundo. Os Protocolos dos Sábios de Sião, o caso Dreyfus ou o julgamento de George Edlji no Reino Unido são casos exemplares do início do século XX, todos sobejamente retratados, que vale a pena recordar por demonstrarem que as notícias falsas não nasceram hoje e têm consequências.

Sintomaticamente, Jonathan Swift, no século XVIII, alertava já que “uma mentira voa, enquanto a verdade vem a coxear atrás dela”. Mas, do mesmo modo que é errado olhar para a forma como a difusão de falsidades se traduz em violência como uma novidade histórica, é também equívoco desvalorizar a originalidade como isso acontece nos nossos dias.


Recordo isto depois de esta semana, no Reino Unido, um jovem de 17 anos ter assassinado três crianças — e ferido outras oito com gravidade — e ainda dois adultos, num ataque com uma faca durante uma aula de dança dedicada a Taylor Swift. A polícia britânica divulgou pouca informação sobre o ataque bárbaro, até porque o acusado é ele próprio menor. Entretanto, sempre foi assegurando que o crime não estava a ser investigado como ataque terrorista, e o The Guardian escreveu que terá sido motivado por perturbações mentais, enquanto a BBC avançou que o suspeito não tinha ligações a movimentos islâmicos radicais.

De pouco valeu esta informação de duas fontes credíveis ou os apelos dos familiares das vítimas para que o luto fosse respeitado. Nas redes sociais, em particular no X, figuras proeminentes da extrema-direita britânica logo se apressaram a sugerir que o atacante tinha chegado de barco ao Reino Unido e que aguardava resposta a um pedido de asilo. As palavras tiveram consequências: primeiro em Southport, depois por todo o Reino Unido um conjunto de motins levou à detenção de mais de cem pessoas, com 50 polícias feridos.

É natural que uma tragédia como a de Southport gere revolta, mas como é que se passa da justa indignação com a barbárie para motins de pendor racista? A resposta está num ecossistema sociopolítico disponível para acreditar em falsidades e na existência de mecanismos rápidos para a sua propagação.

São complexos os motivos pelos quais a ansiedade económica se transformou também em ódio face ao outro e, em particular, num poderoso movimento de islamofobia. A ambição securitária de regresso a sociedades culturalmente homogéneas (um passado mitificado que nunca existiu) é, hoje, uma alavanca política poderosa. Dir-me-ão, sempre foi: o racismo e a xenofobia estiveram na génese da maior barbaridade do século XX, o Holocausto. É um facto. Mas não secundarizemos o que é novo.

Ao contrário do passado, a inexistência de um movimento social organizado não impede a mobilização política. Pelo contrário, a fragmentação política até se revela vantajosa, pois acaba por se transformar em convergência na ação. Acima de tudo, as redes sociais transformaram a validade da centenária asserção de Jonathan Swift. Em particular o X, agora detido pelo entusiasta do trumpismo Elon Musk, funciona com cada vez menos regulação e promove um ciclo imparável: primeiro, contas anónimas difundem uma falsidade, que logo é amplificada por figuras proeminentes da extrema-direita, para depois ser transformada em ação política nas ruas.

As mentiras hoje voam à velocidade da luz, enquanto a verdade fica paralisada a assistir. Também aí radica o deslaçar político das nossas sociedades.

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