quinta-feira, 20 de junho de 2024

A mentira é mais interessante

"O que é a verdade"? Perguntava Pilatos gracejando, talvez que não esperasse pela resposta. Há quem se delicie com a inconstância, e considere servidão o fixar-se numa crença; há quem se afeiçoe ao livre-arbítrio tanto no pensar como no agir. E se bem que as seitas de filósofos desta espécie hajam desaparecido, sobrevivem alguns representantes da mesma família, apesar de nas veias não lhes correr tanto sangue como nas dos antigos. Não é somente a dificuldade e a canseira que o homem experimenta ao perseguir a verdade, nem sequer o facto de, uma vez encontrada, se impor aos pensamentos humanos, o que leva a conceder às mentiras os maiores favores; é sim, um natural mas corrompido amor da própria mentira. Uma das últimas escolas dos Gregos examinou esta questão, mas deteve-se a pensar no que leva o homem a armar as mentiras, quando não o faz por prazer, como os poetas, ou por utilidade, como os mercadores, mas pelo próprio mentir.


Não sei como dizê-lo, mas a verdade é uma luz nua e crua que não mostra as máscaras, as cegadas e os cortejos do mundo com metade da altivez e da graciosidade com que aparecem iluminados pelos candelabros. A verdade pode, talvez, atingir o preço da pérola que mais brilha durante o dia, mas não alcança o preço do diamante ou do carbúnculo que tanto mais brilham quanto mais variadas forem as luzes. Com a mistura da mentira mais se acresce o prazer. Haverá alguém para duvidar que, tirando ao espírito humano as opiniões vãs, as esperanças lisonjeiras, as falsas valorações, as imaginações pessoais, etc., para a maior parte da gente tudo o mais não seria senão uma espécie de pobres coisas contraídas, cheias de melancolia e de indisposição, enfim, desagradáveis?
Francis Bacon, "Ensaios"

Dia do Refugiado

 


O adolescente Lenz conhece a crueldade

O pai agarrou nele e levou-o ao quarto de uma empregada, a mais nova e a mais bonita da casa.

- Agora vais fazê-la, aqui, à minha frente.

A criadita estava assustada, claro, mas o estranho é que parecia que ela estava assustada com ele, e não com o pai: era o facto de Lenz ser um adolescente que assustava a criadita e não a violência com que o pai a disponibilizava ao filho, sem qualquer pudor, sem sequer ter o cuidado de sair. O pai queria ver.

- Vais fazê-la à minha frente - repetia.

Estas palavras do pai marcaram Lenz durante anos. Vais fazê-la.

O acto de fornicar a criadita era reduzido ao mais simples: a um fazer. Vais fazê-la, era a expressão, como se a criadita ainda não estivesse feita, como se fosse ainda uma matéria informe, que esperasse o acto dele, Lenz, para ser acabada. Esta mulher ainda não está feita antes de tu a fazeres, pensou o adolescente Lenz, de uma forma clara, e os gestos seguintes foram os gestos de um trabalhador, de um empregado que obedece às indicações de um encarregado mais experiente, neste caso o seu pai: vais fazê-la.

- Despe as calças - foi a segunda frase do pai. - Despe as calças.

O adolescente Lenz despiu as calças. E todas as ordens que se seguiram foram dirigidas exclusivamente a si; ou seja: o pai não dirigiu uma única frase à criadita - ela sabia o que havia a fazer e fez o que tinha de fazer, máquina que não tem alternativa. Ao contrário do adolescente Lenz que, apesar de tudo, poderia dizer ao pai: não quero.

- Despe as calças - ordenou o pai.

Lenz é conduzido, depois, quase empurrado, pelo pai até à criadita, que está deitada e espera.

- Avança - disse o pai, com rudeza.

E o adolescente Lenz, determinado, avançou sobre a criadita.

Gonçalo M. Tavares, "Aprender a rezar na Era da Técnica"

O debate abortado

Em 2009, o arcebispo de Olinda e Recife excomungou os médicos que fizeram o aborto de uma menina de 9 anos (9!) que havia sido estuprada pelo padrasto. O arcebispo não só não excomungou o padrasto, como ainda fez questão de dizer que o aborto era um crime pior do que o estupro. Houve uma enxurrada de artigos horrorizados na imprensa, e eu, otimista que era, achei que alguma coisa poderia mudar no país.

“Minha esperança é que esse tiro funesto saia pela culatra”, escrevi. “A discussão sobre o aborto, que a Igreja insiste em abafar sempre que vem à tona, voltou reforçada. Já não era sem tempo. A criminalização do aborto é uma das maiores violências institucionais contra as mulheres, especialmente as menos favorecidas, que por vezes se veem vítimas de procedimentos tão primitivos quanto a mente do arcebispo de Olinda e Recife.”

Naquela época, a bancada evangélica tinha 63 deputados e três senadores. Parecia muito, e era mesmo, mas hoje são 202 deputados e 26 senadores. Lula e o PT estavam no segundo mandato, com altos índices de aprovação — e zero interesse na pauta.

Em 2014, ano eleitoral, o assunto voltou aos jornais: Jandira Magdalena dos Santos Cruz, de 27 anos, desapareceu depois de fazer um aborto clandestino. Seu corpo foi encontrado carbonizado, dias depois. Escrevi novamente.

“Não sei o que acho pior: uma candidata que é abertamente contra o aborto, uma candidata que não tem coragem de dizer que não é ou um candidato que se diz satisfeito com a nossa legislação obscurantista. As três posições se equivalem. Estamos em pleno ano de 2024, Constantinopla caiu em 1453 e, não obstante, continuamos gastando tempo e energia com essa discussão bizantina. Fazer ou não fazer aborto é questão de foro íntimo. Quem for contra aborto que não aborte, mas não queira impor as suas convicções ao resto da sociedade. Sabemos onde isso vai dar: aí está essa pobre moça, obrigada pela excelente legislação em vigor a procurar criminosos para se livrar da gravidez indesejada.”

Em 2016, eu ainda não tinha aprendido:

“A epidemia de zika e o aumento explosivo do número de casos de microcefalia puseram na ordem do dia o debate sobre a descriminalização do aborto. Da escuridão, às vezes, nasce a luz: tenho a impressão de que, em menos de um mês, foram publicados mais artigos e entrevistas sobre o assunto do que nos dez anos anteriores. Amaldiçoado com uma das classes políticas mais cínicas e calhordas do mundo, que foge de qualquer tema que possa desagradar aos religiosos, o Brasil está se devendo essa discussão há tempos — mas a simples menção da palavra ‘aborto’ basta para que os nossos legisladores, salvo raras e heroicas exceções, virem para o lado e façam cara de paisagem. Pouco importam, para eles, as vítimas da sua covardia. Quem sabe agora, diante do desastre e da gritaria, tomem vergonha e tenência.”

Que tonta, eu.

Mas me curei. Hoje nem acho mais que o problema esteja só em Brasília: parlamentar não surge do nada. O Congresso é apenas espelho da sociedade. Somos um país retrógrado, perverso e hipócrita, misógino do Oiapoque ao Chuí.

O Brasil é um desgosto que não passa nunca.
Cora Rónai 

Lugares de sonho ou de pesadelo

Quem não sonhou, um dia, com um lugar perfeito? Como a ilha dos Prazeres, perto da Toscânia, em que as crianças não precisam estudar nem lavar atrás das orelhas. Foi aonde levaram Pinóquio. Ou a ilha do Tesouro, na costa do México, onde, em 1754, o corsário inglês Flint enterrou uma arca com 700 mil libras. Ou a Terra do Nunca, onde os garotos, como Peter Pan, não crescem e não se tornam adultos. Pena que esses lugares só existam na fantasia de seus criadores, respectivamente Carlo Collodi, Robert Louis Stevenson e James M. Barrie. Aqui, no nosso quintal, os equivalentes seriam a Pasárgada de Manuel Bandeira, a Maracangalha de Dorival Caymmi ou a Platiplanto de José J. Veiga.

 


E há lugares imaginários que, paradoxalmente, existem, embora de difícil localização no mapa, por suas fronteiras difusas. O mais célebre deles foi detectado em 1974, pelo economista Edmar Bacha: o reino de Belíndia, um mix da Bélgica com a Índia, onde o lado indiano dava duro para o crescimento econômico, mas este só beneficiava o lado belga. Como, aliás, o PIB brasileiro durante a ditadura militar.

Na esteira de Bacha, Mario Henrique Simonsen detectou Banglabânia, misto de Bangladesh com Albânia, onde o já péssimo sempre podia piorar. Delfim Netto, por sua vez, descobriu a Ingana, mistura de Inglaterra com Gana, com seus impostos de país europeu e serviços públicos de Terceiro Mundo. E Bacha também localizou Rumala, uma combinação de Rússia com Guatemala —uma elite corrupta associada a uma alta taxa de criminalidade.

Há pouco, sob as trevas de Bolsonaro, Bacha descobriu também que o Brasil, com suas florestas em chamas e o garimpo ilegal nos territórios indígenas, estava sendo reduzido a um lugar chamado Brasa.

Os lugares imaginários costumam ser territórios do sonho. Mas estes são do pesadelo. O perigo é, ao acordar do pesadelo, descobrir que não estávamos dormindo.

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Pensamento do Dia (esqueceu?)

 


Brasileiros ganham R$ 500 por mês para treinar AI

O mercado bilionário da inteligência artificial (IA) tem atraído talentos brasileiros com salários muito acima da média para engenheiros, matemáticos e outros profissionais que se destacam na área.

Mas nem todos os envolvidos com esta tecnologia estão em uma posição invejável.

Há todo um contingente de trabalhadores terceirizados que fazem um trabalho manual laborioso, ganham menos da metade de um salário mínimo, em média, e, por isso, têm mais de um emprego para conseguir pagar as contas — mas são essenciais para que os sistemas de IA sejam capazes de operar.

Os chamados “operários de dados” são considerados “trabalhadores fantasmas” porque executam nos bastidores uma série interminável de microtarefas para refinar as inteligências artificiais.


"Os sistemas de IA requerem muito trabalho humano manual e discreto para funcionarem, o que evidentemente contradiz a narrativa dominante da progressiva e inexorável automação”, diz a socióloga Paola Tubaro, especializada da ciência da computação e professora e pesquisadora do Centro de Pesquisa em Economia e Estatística, na França.

“Por isso, empresas de tecnologia e desenvolvedores de IA não se dispõem a divulgar esse tipo de trabalho, que assim permanece escondido, ou seja, 'fantasma'".

Mas o que faz um operário dos dados?

"Eles inserem dados para treinar e moderar sistemas e atividades de IA", explica Rafael Grohmann, professor da Universidade de Toronto que pesquisa o trabalho no mundo contemporâneo.

Esse tipo de atividade ficou conhecida como microtrabalho, pela natureza fragmentada das tarefas envolvidas. O fenômeno é novo, assim como os termos usados para descrevê-lo, diz Grohmann.

“Temos usado muito o termo data workers [operários de dados, em tradução livre do inglês], o que os diferencia dos tech workers [profissionais de tecnologia], que são os responsáveis por produzir, projetar e analisar os dados da IA".

Na prática, esses trabalhadores (de dados) também podem ser chamados de "treinadores de IA".

Pegue um sistema como o ChatGPT, por exemplo. Os “treinadores” são responsáveis por alimentar o robô com as informações e dados que ele precisa para responder perguntas de usuários, auxiliar em traduções, fazer pesquisas, dentre outras tarefas.

Praticamente todos os sistemas de IA dependem destes operários de dados. Redes sociais, por exemplo, os contratam para monitorar as postagens e interações e detectar ações que ferem suas regras ou a lei.

Na comparação com uma fábrica tradicional, esses profissionais seriam o chão de fábrica.

"A lógica do que é a classe operária vai mudando com o tempo. Essa é uma nova apresentação do que são os blue-collars [termo em inglês para a classe operária] e os white-collars [os executivos, que estão longe das tarefas manuais]", diz Grohmann.

Os operários de dados ganham, em média, R$ 583,71 por mês em um emprego, segundo a pesquisa Microtrabalho no Brasil: Quem são os trabalhadores por trás da inteligência artificial.

Esses trabalhadores ganham por cada tarefa concluída e não por hora trabalhada. Segundo o estudo, esse valor médio mensal corresponde a cerca de 15,5 horas de dedicação por semana (cerca de R$ 9,41 por hora, na média).

Segundo um estudo de 2018 da Organização Internacional do Trabalho realizado com 3,5 mil microtrabalhadores de 75 países, a média global de ganho por hora é de US$ 4,43 (cerca de R$ 24, em valores atuais).

Mas, enquanto nos Estados Unidos o valor é maior, de US$ 4,70 (cerca de R$ 25), os operários de dados da África faturam bem menos, US$ 1,33 (cerca de R$ 7) por hora.

No Brasil, de acordo com a pesquisa Microtrabalho no Brasil, o valor gira em torno de US$ 1,60 (cerca R$ 9).

A pesquisa, conduzida por Tubaro junto com o psicólogo brasileiro Matheus Viana Braz e o sociólogo italiano Antonio Casilli, fez uma radiografia da situação do trabalho fantasma no Brasil.

Esse valor fica muito aquém do que os empregadores prometiam a esses trabalhadores que ganhariam realizando estas funções.

Os 477 trabalhadores fantasmas ouvidos pela pesquisa esperavam receber três vezes isso, cerca de R$ 1,6 mil por mês.

Pelo ganho bem abaixo do esperado, eles costumam acumular empregos, por vezes na mesma área, e conseguem com as múltiplas jornadas chegar a uma renda mensal média de R$ 1,8 mil.

O pesquisador em inovação e ciência de dados Mauro Zackiewicz, de 50 anos, que tem um doutorado nesta área, conta que trabalhou por pouco menos de um mês para uma fabricante de celulares recebendo documentos, como áudios triviais, conversas curtas e, por vezes cenas de filmes ou novelas.

“Tinha de corrigir tudo, provavelmente para alimentar de dados um sistema de reconhecimento de voz, mas nem chegaram a me contar para o que fazíamos aquilo", conta ele.

"Ganhava pouca coisa, dava apenas para a subsistência, e nem tinha contrato, o que é, digamos assim, curioso para uma grande empresa."

A pesquisa Microtrabalho no Brasil constatou que 66% dessa força de trabalho só ganha o suficiente para pagar as contas mais básicas.

A grande concorrência entre esses trabalhadores é um fator que contribui para os salários baixos, explica Tubaro.

"As plataformas querem garantir mão-de-obra suficiente para atender picos de demandas. O resultado é que, na maior parte do tempo, há excesso de trabalhadores e, por consequência, muita competição entre eles", explica a socióloga.

Isso significa que, na prática, os operários de dados não conseguem bater as metas estabelecidas pelos empregadores e, como são remunerados de acordo com isso, ganham valores reduzidos por cada hora trabalhada.

A pesquisa Microtrabalho no Brasil constatou que há muitas pessoas com diploma universitário fazendo esse tipo de serviço.

Dos quinze participantes selecionados para entrevistas, como uma amostra representativa do setor, treze eram formados em cursos variados, como direito, administração, ciências da computação e fisioterapia.

Sete em cada dez trabalhadores deste mercado têm entre 18 e 35 anos, segundo o estudo. De cada cinco, três são mulheres.

A maioria mora nos Estados de São Paulo (28,8%), Rio de Janeiro (12,6%) e Minas Gerais (9,7%).

O estudante Gustavo Luiz, de 19 anos, se divide entre o curso de inteligência artificial da Universidade Federal de Goiás, e o emprego como operário de dados.

“Estou trabalhado no desenvolvimento de um sistema de IA para analisar sentimentos expressos em textos e frases em português”, conta ele.

“Esse modelo vai receber dados e tentar encontrar padrões, como de sentimentos, em comentários nas redes sociais.”

Por ser um fenômeno detectado mais recentemente, não há dados precisos sobre o aumento da demanda por esse tipo de trabalho no Brasil.

Mas ofertas do tipo em plataformas de trabalho, como a rede social LinkedIn, têm se multiplicado. Para começar a trabalhar com isso, normalmente basta se cadastrar em um site e seguir as orientações.

Guilherme Graper, de 24 anos, conta que trabalha em uma plataforma da Amazon, mas contratado por outras empresas.

"Por exemplo, tem uma demanda de colocar nomes de médicos nesse sistema para treinar uma IA para pesquisar por médicos em toda a internet", explica.

Os ganhos variam muito. Guilherme diz que já chegou a tirar em um mês apenas R$ 300, mas também já ultrapassou a casa dos R$ 5 mil. Em média, ele calcula que ganha cerca de R$ 2 mil mensais.

Na maioria dos casos, as empresas que contratam trabalhadores fantasmas prestam na verdade serviços para outras bem maiores.

Gigantes de tecnologia, como Meta (do Facebook e Instagram) e a OpenAI (do ChatGPT) subcontratam os seus operários de dados.

"Trata-se de uma realidade do Sul Global [termo que designa países mais pobres, a maioria localizada no hemisfério sul]. São trabalhadores na Venezuela, na Colômbia, no Quênia", ressalta Grohmann.

Apesar de estarem distantes dos maiores centros mundiais de tecnologia, como o Vale do Silício californiano, usualmente os operários de dados treinam IAs de propriedade das grandes marcas do setor.

"A distância não é somente geográfica, como também linguística e cultural. Geralmente, essa distância leva a redução de custos para as empresas do Vale do Silício, mas resultam em baixa qualidade", comenta a socióloga Paola Tubaro.

Tanto a terceirização quanto a falta de regulamentação da profissão levam também, segundo Tubaro, a "práticas sob condições indesejáveis, com precariedade, baixos pagamentos, falta de reconhecimento, informalidade e, como em casos de moderação de conteúdo em redes sociais, riscos à saúde mental".

"Os moderadores de conteúdo das redes sociais ainda estão expostos a riscos psicológicos", completa Tubaro.

Isso por efeito do contato diário com imagens de crueldade, crimes e outras atrocidades que são detectadas pelo algoritmo dessas plataformas e, depois, repassados para avaliação humana.

Já há, contudo, iniciativas que visam regulamentar esse trabalho. É o caso do projeto global Fairwork, coordenado pelo instituto Oxford Internet e pelo Centro de Ciências Sociais WZB Berlin.

Presente em 38 países de cinco continentes, inclusive no Brasil, a organização denuncia abusos relacionados aos trabalhadores de dados, além de propor soluções.

Em todo o mundo, a Fairwork afirma ter convencido 64 empresas de tecnologia a implementar um total de 300 mudanças em políticas internas, como de salários mínimos para a categoria.

A organização é influente principalmente na Europa, mas também tem presença no Brasil, onde tem atuado em prol da criação de leis para regularizar essa categoria de trabalhadores.

A Fairwork destaca em seu site que está "envolvida com o grupo de trabalho tripartido do governo (brasileiro) que procura elaborar um projeto de lei para proteger os direitos dos trabalhadores".

Além de atuar no Congresso em favor de leis que garantam mais direitos trabalhistas, a organização produz relatórios que denunciam o cenário no Brasil.

O documento, divulgado em 2023, apontou que, em uma análise de onze empresas do setor, apenas duas conseguiam garantir ao menos um salário mínimo de pagamento a estes trabalhadores.

Tubaro avalia que estas iniciativas podem ajudar a combater condições de trabalho que são consideradas precárias.

A pesquisadora destaca como bons exemplos leis recentemente aprovadas na Alemanha e na França e que, segundo avalia, "exigem que pelo menos as grandes empresas exerçam a devida diligência no respeito dos direitos humanos e laborais ao longo de suas cadeias de abastecimento".

Trata-se de um problema global. A Fairwork produz relatórios sobre os cenários para os microtrabalhadores em 36 países, tanto em desenvolvimento, como Argentina, Quênia e Índia, quanto desenvolvidos, como França e Estados Unidos.

Segundo um desses relatórios, 16% dos trabalhadores americanos realizam alguma forma de microtrabalho, mesmo que como renda secundária. É o país que lidera o ranking neste quesito.

Dentre a atuação de treze empresas nos Estados Unidos, apenas 3 alcançaram os critérios estabelecidos para serem consideradas como ambientes de trabalho justos.

"Há custos globais para esse rápido desenvolvimento e pelo aumento da presença da IA", afirma o pesquisador Rafael Grohmann. "Mas há especificidades para cada país e isso exige atenção".

Em países como os Estados Unidos, esses trabalhadores costumam atuar mais, por exemplo, como motoristas de Uber.

"As tarefas mais precárias, como as de moderação de conteúdo, costumam ser terceirizadas para nações da África, da Ásia e da América Latina", diz Grohmann.

Nosso senhor

O mercado financeiro e os rentistas (e os economistas que trabalham para os rentistas e os financistas) passaram a capturar o patrimônio público. Eles estão, no ano da graça de 2024, portanto 30 anos depois do real, capturando 7% do PIB
Luiz Carlos Bresser Pereira, ex-ministro da Fazenda

Pautas contraditórias

É surpreendente como as sucessivas vitórias eleitorais da direita ainda surpreendem analistas e militantes de esquerda presos à antiga Era de Abundância, por não perceberem a pauta dos eleitores na Era dos Limites: visível no desequilíbrio ecológico, no esgotamento financeiro dos Estados, na pressão dos imigrantes, nas reivindicações das minorias, nos deficits previdenciários, na inversão da pirâmide etária com mais velhos e menos jovens.

Até recentemente, com os recursos que pareciam ilimitados na natureza e no Estado, a esquerda apontava na direção do aumento dos direitos sociais. Era possível receber imigrantes sem reduzir direitos já conquistados, aumentar o consumo sem pressionar desequilíbrios ecológicos para as gerações futuras, atender a crescentes benefícios previdenciários, respeitar minorias sem ofender a maioria. A migração em massa desarticula os direitos conquistados em décadas passadas, a crise ambiental não permite oferecer o mesmo padrão de consumo às gerações futuras, as finanças públicas desequilibradas não asseguram os recursos fiscais necessários para aposentadorias e outros benefícios. Com a consciência dos limites de recursos e o fim da ideia de abundância para todos, esses direitos e promessas ficam ameaçados, e o eleitor opta pela direita para defender privilégios com a mesma lógica que antes votava em propostas progressistas da esquerda para aumentar direitos.


O eleitor fica na direita porque mantém a mesma lógica democrática de usar seu poder soberano para construir de imediato uma sociedade melhor para si e seu entorno. Antes, era abrindo as fronteiras para as novas gerações. Originários de outros países, os estrangeiros, agora, já não cabem dentro das fronteiras nacionais: nem os estrangeiros geográficos que pedem para entrar; nem os estrangeiros sociais, os pobres do próprio país, que um livro de 2002 chamava de "instrangeiros"; nem os estrangeiros geracionais, jovens atuais e os que ainda vão nascer e precisarão evitar a hecatombe climática.

A pauta dos eleitores perdeu sintonia com a pauta humanista, mas as chamadas forças progressistas mantêm-se prisioneiras a um tipo de futuro que o presente faz impossível. A visão humanista olha o futuro da humanidade com ampliação de direitos para todos os seres humanos, não importa em que lado estiver da fronteira geográfica, social ou geracional. O discurso da direita fala para o presente e para a nação, com a manutenção dos privilégios, a garantia da ordem e dos costumes e ainda oferece paliativos sociais que acenam a uma utopia provisória, como carro elétrico que minora a crise ecológica sem resolvê-la e rendas mínimas que mitigam a penúria dos pobres sem superar a tragédia da pobreza, sem incorporar os "instrangeiros".

A Era dos Limites criou um divórcio entre o humanismo planetário e futurista, e a democracia nacional e imediatista. O eleitor defende seus interesses locais e de curto prazo, mas a esquerda, em vez de inventar novas utopias, fica presa na nostalgia ideológica, até da necrofilia ideológica. Não oferece propostas para fazer a democracia avançar a alguma forma de "humanocracia" (voto nacional submetido a valores universais); não busca convencer o eleitor a entender os riscos ecológicos e morais da xenofobia e do imediatismo contra a humanidade e o futuro; nem desperta em cada indivíduo um sentimento de solidariedade com todos os seres humanos e com a natureza; não propõe uma alternativa à riqueza medida pelo PIB. Não entende que seu humanismo é recusado porque não atende à pauta dos eleitores com horror ao futuro, aos riscos, aos estrangeiros, às incertezas, à violência, ao crime, às mudanças no clima e nos costumes. No lugar de oferecer novas utopias convincentes filosoficamente e sedutoras eleitoralmente, a esquerda prefere ficar presa a ideias do passado ou cair no eleitoralismo, ou substituir a legítima vontade individualista e imediatista do eleitor pela vontade ilegítima de autocratas. No lugar de perceber o esgotamento de suas ideias, acusa o eleitor e a direita eleita.

A esquerda precisa entender as mudanças ocorridas, tratar as ideologias passadas como peças de museus intelectuais, do tempo anterior à Era dos Limites, e formular novos sonhos e propostas necessárias para ampliar direitos sociais e ecológicos a toda humanidade com apoio do eleitor nacional que não quer perder seus privilégios atuais em nome do futuro e da humanidade.

O futuro possível requer coragem

Há momentos em que é muito importante relembrar a História. Acredito que estamos em um desses momentos. O pessimismo é a grande realidade instalada a nível global. O desânimo e o desalento imperam, e a maioria das pessoas acha que a humanidade está sem rumo. Muitos, inclusive, já jogaram a toalha. Alguns, de tão desiludidos, anseiam pelo fim do mundo. Entre os grupos etários, a juventude é o mais afetado. Uma pesquisa com 10 mil jovens de 10 países publicada no “The Lancet” há um ano e meio revelou que 75% deles achavam o futuro assustador; 56%, que a humanidade estava condenada. Por essa razão, 48% afirmaram que não teriam filhos. O que podemos esperar do futuro se os mais novos, responsáveis por construí-lo, estão totalmente sem esperança? No limite, este pensamento fatalista pode representar um retrocesso civilizatório, ou mesmo o fim dos nossos tempos.

Há 35 anos, uma multidão que não aceitou continuar no obscurantismo fez o impossível se tornar realidade. O ano de 1989 foi um verdadeiro “annus mirabilis”, como se diz em latim, literalmente mudou tudo. Os protestos por liberdade que irromperam no Leste Europeu no período escalaram para a imensa Revolução Pacífica, culminando na queda do Muro de Berlim e no colapso soviético. Livre do fascismo e do comunismo, o mundo estava fadado a ser democrático. Nas palavras de Francis Fukuyama, era o fim da História como tal. A perspectiva de que seria substituída por outra mais justa, mais tolerante, guiada pela razão e pelo progresso, gerou uma enorme onda de esperança. Foi o início de uma época de otimismo e progresso.

Mas a utopia liberal das democracias perfeitas durou pouco. O panorama atual é desolador: vivemos uma mistura tóxica de insatisfação, ressentimento e intolerância, inclusive por parte dos que se apresentam como os defensores da diversidade, da equidade e da inclusão, mas perseguem e cancelam quem pensa diferente - a liberdade de expressão é um direito só deles, pois se acham os detentores da verdade. O grande perigo é que novamente estamos diante da ameaça do totalitarismo, do fundamentalismo religioso e do populismo autoritário. Hoje, o caminho do meio, do bom senso em torno de ideais comuns, construído a duras penas, foi totalmente bloqueado, está fora de moda e não tem apelo. Estamos vivendo o enfraquecimento das democracias com o abalo sistemático das instituições e dos valores democráticos em diversos países. Até os Estados Unidos e a França, dois bastiões da democracia liberal, apresentam sinais de deterioração.


No Brasil, a situação também é crítica. Os valores e convicções que servem de alicerces para a nossa frágil democracia começaram a ser degradados há 20 anos pela corrupção, pela pobreza e por apostas erradas da política econômica e fiscal dos governos de plantão. Tudo isso minou a confiança da população nas instituições. Na última edição do ranking “Democracy Index”, da “The Economist”, ficamos na 47ª posição entre 167 países, o que nos coloca na categoria “democracia imperfeita”.

O país está cansado de promessas de crescimento infundadas e de políticas sociais de maquiagem. Estamos a um passo de virar um país autoritário. Não bastasse, o Brasil entra agora na perigosa seara da insegurança jurídica e acelera ladeira abaixo para perder a confiança dos investidores nacionais e internacionais. É possível mudar esse jogo, temos só que acreditar nisso!

Precisamos superar o pessimismo e unir todos as pessoas de bom senso, de direita e de esquerda, diante um de um projeto sensato para o país. É isso que propõe o cientista político Luiz Felipe D'ávila no novo livro “Vire à direita e siga em frente”. Para D'ávila, só há uma alternativa para deixarmos um país melhor para os nossos filhos e netos. Os defensores da liberdade precisam sair do seu casulo e lutar nas ruas e na imprensa, no mercado e nas urnas, para construir um país realista, confiável, aberto para o mundo, com capacidade de crescimento, oportunidade de trabalho para todos, o mais rápido possível.

Certamente, o mundo não está em sua melhor forma, longe disso. No entanto, hoje temos muito mais informações do que jamais imaginamos ter e, por meio delas, podemos ver que, de perto e sem nenhum viés, o mundo melhorou drasticamente ao longo dos séculos. Essas mesmas informações nos mostram que tudo de bom que aconteceu foi consequência de ações e de muito esforço. Como diz o psicólogo Steven Pinker, o progresso não é inevitável, é intencional e pode ser direcionado, pois não é mera consequência do destino. Portanto, o progresso, se for motivado por ambições elevadas para uma sociedade melhor, pode se transformar numa grande conquista e num meio para criarmos um mundo e um país melhor.

O otimismo dos primórdios do século 20 cedeu lugar ao pessimismo quando populistas e outros políticos iliberais foram eleitos. Para o mundo melhorar, temos de evitar que as pessoas sejam seduzidas pelo discurso catastrofista.

Foi uma longa jornada até deixarmos de ser subjugados por reis, ditadores e tiranos e nos tornarmos cidadãos livres, responsáveis por nossas escolhas. Enfrentamos períodos de obscurantismo e de intolerância, de guerras e conflitos, para expurgar fanáticos e sabotadores da liberdade. Não podemos perder essa conquista jamais. Não podemos nos deixar contaminar e paralisar pela desesperança.

A lição de 1989 é que mudanças espetaculares são possíveis. Mesmo a situação mais terrível pode ser superada com racionalidade, com fé e coragem. O pragmatismo é o antídoto para combater as paixões extremistas e está na hora de usá-lo. A clareza de ideias, a diplomacia a organização e determinação são os meios. As pessoas podem construir o próprio futuro a partir de uma concepção de “bem comum”, do que queremos como sociedade e de quais os valores e os princípios nos servirão de bússola para chegar ao nosso destino.

Não somos vítimas passivas de fatos inesperados sobre os quais não temos controle. Nem das decisões de líderes, mesmo que democraticamente eleitos, com as quais não concordamos.

Homo sapiens, de mal a pior

Na pletora de más notícias e novas decepções, continuamos no esforço cidadão, cotidiano, teimoso mesmo, de não perder a esperança no Brasil e lutar por nosso país como por nossa própria vida. Nesses dias ásperos e tristes de inacreditável atraso civilizatório, em que se põe em risco, despudoradamente, a vida de crianças e adolescentes vítimas da mais perversa violentação humana, que é um abuso sexual, nos perguntamos: é em nome de que? Não bastam a repetição de “criança não é mãe” e estuprador não é pai”, que temos visto em mensagens e publicações, para alertar sobre, no mínimo, o absurdo dessa medida extemporânea, quando há tempos o país já tem uma legislação, prevista por nossa Constituição, e protetora para casos de gestações de fetos anencéfalos, risco de vida da mãe e frutos de estupro, permitindo o abortamento de modo legal e cercado dos melhores cuidados de saúde a essas mulheres, na maior parte das vezes menores de idade, a compor a vergonhosa estatística dos milhares no país.


Análises corajosas, sem concessões, podem, sem dúvida, levar a uma tomada de consciência. Sem dúvida, mesmo? Nossa sociedade, tão marcadamente desigual, inclusive no recebimento de informações já processadas e com todo o dolo da desvirtuação, está mesmo pronta a entender o que seja uma ação civilizatória, que independa de critérios ditos religiosos, e que arbitrem sobre preceitos médicos ou de decisões pessoais? Sem dúvida há que se atentar para não generalizar, porquanto não se pode atribuir a uma suposta vontade de apenas um único credo, como se este fosse homogêneo em sua opinião e certezas. Sabemos que não é assim.

Enquete muito recente sobre esse projeto de lei, revela que 88% dos que se manifestaram, são contrários a ele. Porém, será que essa reação é capaz de desconstruir a volúpia dos que querem criar mais um fato satânico de atraso, com tantas mazelas e problemas que o país tem a resolver, e ações educadoras a implementar, sobretudo para proteger os mais vulneráveis? Consola-nos o coro harmônico composto pela homilia do padre Júlio Lancelotti, em prol de nossas meninas e mulheres, os textos de há dois dias, seminais e transbordando de sensibilidade, das jornalistas Dorrit Harazin e Miriam Leitão, e o do médico Daniel Becker, de par com o estranhamento que contamina saudavelmente o nosso inconsciente coletivo de que há algo errado em pauta, e que não podemos ser apenas expectadores de tantos desatinos.

Pensar que a tudo isso se somam outros dados catastróficos na educação dessa mesma geração que é vítima, em particular a que mais sofre violência, com ensino básico que não provê mais do que uma alfabetização funcional, a impedir irremediavelmente mecanismos críticos de defesa; somado à recente abertura de escolas médicas em profusão, sem critério algum de qualidade ou compromisso com a saúde do país, e suas prioridades, fato aceito passivamente como um bom negócio para ganhar dinheiro, torna nosso exercício cotidiano de resiliência mais robusto, salvo nos que sucumbem à inércia, embriagados dela mesmo, com queixumes permanentes de fatalidade.

Vivemos esse agudo momento (ao tempo que nos indagamos se ele é apenas uma exacerbação mórbida de um mal crônico que assola nossa realidade brasileira) no qual até a bioética, como ciência, tem que se esforçar para não se enganar com ela mesmo, balançando entre seus limites, e nos obrigando a levantar questões do verdadeiro sentido da vida, de modo permanente.

Como nossa preocupação essencial é fazer pelo outro além de fazer por nós mesmos (como pôr a máscara do avião antes em nós mesmos para que possamos auxiliar o outro), é natural que nos sintamos decepcionados com o pouco que temos podido fazer para modificar o real concreto, ou ao menos penetrar, com a racionalidade que deve nos nutrir e guiar, nesse imaginário complexo e fascinante de nossa gente, para não perder a aventura de sonhar e alcançar dias mais humanos.

terça-feira, 18 de junho de 2024

Retrocessos na função social da terra

Nas últimas semanas, duas propostas legislativas, apresentadas em casas do Congresso Nacional, suscitaram inquietações sociais e debates porque, para muitos, usurpam direitos sociais historicamente reconhecidos.

Uma, que tem por objetivo declarado privar os que são beneficiados pela reforma agrária de direitos a ela vinculados. Os relativos a medidas de apoio à consolidação dos assentamentos, necessárias a que a reforma produza os efeitos sociais e econômicos a que ela se destina. A outra, a emenda constitucional que trata das terras de marinha e supostamente privatiza as praias brasileiras.

 


As duas propostas se situam na concepção de ministro do governo Bolsonaro, expressa na reunião do ministério de 22 de abril de 2020: aproveitar a distração da mídia e da população com a pandemia para deixar a boiada passar por baixo das formalidades da lei, através do recurso às normas infralegais e desburocratizar o trato da questão ambiental.

Variante desse disfarce, o Projeto de Lei nº 709/2023, apresentado na Câmara dos Deputados, bloqueia o acesso aos benefícios legais aos que tenham invadido a terra para obtê-la.

O endereço confessado é o MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Mas o serão também os proprietários de milhões de hectares de terras que não conseguiram produzir documentação que legitimasse o suposto direito quando chamados a fazê-lo pelo governo federal. Nada impede que os movimentos sociais pleiteiem na Justiça que equivalente medida os alcance, como os benefícios fiscais, favorecimento e financiamentos e outros benefícios.

O regime militar separou propriedade da terra e propriedade do capital, isto é, das construções, equipamentos, plantações, o que é feito pelo trabalho. E o fez para desbloquear o desenvolvimento capitalista no campo, como outros países o fizeram.

O Estatuto da Terra, de novembro de 1964, estabeleceu os fundamentos institucionais da reforma agrária. Também sociais porque episódio da revolução burguesa no Brasil. Um empresariado que desconhece os fundamentos sociais de seus interesses de classe não percebe que ao opor-se à reforma opõe-se a si mesmo e ao futuro do capitalismo entre nós. O mesmo acontece com os membros do Congresso.

A Lei de Terras de 1850, em nosso direito fundiário, ocupou o lugar que, até 1822, fora da Lei de Sesmarias de 1375 aplicada no Brasil a partir da primeira metade do século XVI. Por essa lei, a Coroa, isto é, o Estado, tinha o domínio da terra e o fazendeiro tinha o direito de uso enquanto tornasse produtivas as terras que lhe fossem concedidas. Se não o fizesse, caíam elas em comisso, retornando à posse da Coroa para redistribuição a outrem.

A Lei de Terras, de 1850, preservou direitos e obrigações do regime sesmarial, como os relativos às terras comunais e ao que se chama de terras de marinha. Sem o saber, o MST reaviva valores de posse e uso da terra que procedem desse regime antigo.

Pela lei de 1850, o Estado, com ressalvas, transferiu o domínio sobre a terra aos particulares, criando um direito de propriedade baseado em posse e domínio. Com isso criou uma anomalia, a de substituir o escravo, como fundamento dos empréstimos hipotecários, pela terra, que não tinha propriamente valor.

Criou a questão agrária brasileira, fundamento de conflitos que o regime militar quis resolver com várias medidas limitantes do direito absoluto de propriedade.

A partir da Revolução de Outubro de 1930, já no âmbito do processo de industrialização e de modernização da economia brasileira, o Estado, paulatinamente, tomou medidas para reaver o domínio da terra, de que abrira mão em 1850.

Fê-lo lentamente a partir do Código de Águas, que separou o solo do subsolo, e portanto restringiu o direito de propriedade à superfície. Mesmo aí, a retomada de domínio prosseguiu em relação, também, à superfície no que se refere às florestas, aos territórios indígenas, aos lugares da memória histórica. O proprietário não pode ser dono de bens insuscetíveis de apropriação privada. Caso das terras comunais, expressamente reconhecidos pela Lei de Terras.

Um último esforço nesse sentido foi o do general Danilo Venturini, ministro de Assuntos Fundiários, em 1983, cujo ministério produziu uma consolidação das leis agrárias do país, como referência da precedência do trabalho, a posse útil, para agilizar a reforma agrária mediante decisão de um juiz de comarca em favor do trabalhador.

As duas medidas, tanto a que bloqueia a reforma agrária quanto a que desfigura o que são terras de marinha, revogam mais de cem anos de esforços políticos do país para reinstaurar a soberania e o domínio da nação sobre o seu território e o uso de suas terras.
José de Souza Martins

Pensamento do Dia

 


O dito de Ulysses

Há a velha máxima de que o próximo Congresso será sempre pior que o antecessor. Vale como tirada de humor autodepreciativo consagrada pelo então presidente da Câmara, deputado Ulysses Guimarães, mas não necessariamente como expressão da verdade na história.

Já tivemos ótimas sucessoras de boas legislaturas. Caso da que veio em seguida à da Assembleia Constituinte eleita para o período de 1991-95, substituída por aquela que aprovou o Plano Real, a Lei de Responsabilidade Fiscal, as privatizações e a abertura da economia —justiça seja feita e apesar de todos os pesares, iniciada no governo de Fernando Collor.

Os mais antigos nessa lide lembramos bem. Havia fisiologismo, balcão de negócios, corporativismo, malandragem, mas não era a regra.


Havia um centro de convergência suprapartidária que resolvia as crises, encaminhava os temas de interesse nacional e acabava por se sobrepor às malfeitorias que, se não chegavam a ser exceções, eram relegadas às franjas da marginalidade legislativa.

A partir de um determinado momento, por volta de 2003, aquele grupo condutor perdeu espaço para o baixo clero, elevado à condição de cardinalato. Aí a coisa degringolou, e podemos dizer que se concretizou o dito de Ulysses.

Assim chegamos onde estamos: um Congresso de poder máximo com estatura moral mínima, que desrespeita a delegação recebida pelo eleitorado para a tarefa de legislar, fiscalizar e debater assuntos de relevância e urgência nacionais.

Há parlamentares sérios, mas parecem espécie em extinção. Prevalecem não os de quinta série, como se diz para infantilizar os "sem noção", mas os de quinta categoria que aceitam votações a jato de temas desprovidos de relevância e urgência para o país.Arthur Lira dá o tom da continuidade de um Parlamento cujo poder se submete a interesses paroquiais, ideológicos e fisiológicos desconectados das necessidades da população.

Convívio com a maldade

O pai gostava de contar histórias para sua filha antes de dormir. Se fosse o caso, cantava canções de ninar: uma pessoa normal, plena de dedicação. Tudo aparentemente de acordo com a convivência familiar, como se esse cotidiano fosse a regra, não admitindo nenhuma exceção. No entanto, seu trabalho de policial já tinha sofrido uma grande alteração, tanto em termos financeiros como de prestígio. A partir do momento em que os uniformes pretos da SS passaram a frequentar a sua casa, sua vida já era totalmente outra.

Ascendeu na carreira, exibia uma eficiência acima do comum no genocídio de judeus, homossexuais e ciganos, tendo também se destacado no assassinato de deficientes mentais. Tornou-se, por seus feitos, comandante dos campos de extermínio de Treblinka e Sobibor. Seu nome era Franz Stangl. Mais propriamente poderia ser denominado de especialista no culto da morte e em sua organização em uma máquina de extermínio. No entanto, continuava a ser um pai carinhoso. Nele conviviam a aparente doçura do pai e o monstro, dedicado, em outro sentido, à maldade.

Finda a guerra, fugiu para a Síria, onde pôde novamente pôr sua “qualificação” a serviço do Exército e de seu serviço de inteligência, pois, sendo um especialista da tortura, poderia bem vender os seus préstimos. Ademais, continuaria colaborando com o extermínio dos judeus, naquele então lutando pelo estabelecimento do Estado de Israel e, depois, em sua consolidação. Mudou de lugar, mas não de convicção. No entanto, um alto funcionário sírio quis com ele acertar o seu casamento com sua filha, prestes a completar 14 anos. Não querendo comprometer o seu futuro, conseguiu graças a seus parceiros nazistas fugir para o Brasil, onde se tornou um trabalhador da Volkswagen. Na ocasião, o pai primou sobre o monstro!

Nesse meio tempo, um jovem húngaro, Gabor (Gabriel Waldman, "Ingrid, a Filha do Comandante", com prefácio de Celso Lafer e posfácio de Marcio Pitliuk, Buzz Editora), tinha se estabelecido no Brasil, depois de vagar pela Áustria com sua mãe. Eram pessoas abandonadas no mundo, não tendo a quem recorrer. A fome, a solidão e a ausência de esperança os habitavam. Seu pai e toda a sua família tinham perecido nos campos. Viveram no imediato pós-guerra na Hungria, que tiveram de abandonar dada a instalação de uma ditadura comunista. De um mal a outro! Aportaram em nosso país em 1952, em busca de uma nova vida. No entanto, a maldade continuava à sua espreita, embora não o soubesse.

Tendo aprendido nosso idioma, inscreveu-se em um curso de madureza para concluir seus estudos. Eis que, um dia, uma bela mulher loira irrompe em sua sala de aula, cabelos esvoaçantes, e sentase ao seu lado. Foi uma paixão instantânea, tendo como idioma o alemão. Era, ainda, do ponto de vista de seu trabalho, chamado como intérprete em empresas alemãs, conferindo a essas um ar de normalidade. O amor tudo apagava, um nem sabendo nem se interessando pela vida do outro. Os corpos falavam a sua linguagem própria.

Acontece que foi convidado a uma festa de amigos dela, quando, de imprevisto para ele, mas não para ela, foi levado a uma casa vizinha para conhecer os seus pais. Foi a eles introduzido de uma forma cordial, porém um pouco fria. O aperto de mão já anunciava que algo diferente estava presente, embora não fosse diretamente anunciada qualquer anormalidade. Ocorre que o pai era nada mais do que Franz Stangl. Aperto de mão em certo sentido aterrador, pois estava convivendo com uma pessoa direta ou indiretamente responsável pela morte de seu pai e de sua família. Era a mão da morte, travestida da familiaridade de vida.

Gabor, agora Gabriel, nada sabia. Ingrid, sua namorada, estava a par de tudo, embora achasse que estava autorizada a escolher suas companhias. Um judeu na família do monstro. A atração dos corpos, todavia, foi anulada pela decisão paterna de interromper essa relação, com medo, provavelmente, de que sua identidade terminasse por ser revelada. Aos prantos, a bela loira cortou seu relacionamento, deixando o seu companheiro perplexo.

Anos depois, lendo o jornal, terminou por descobrir a identidade de seu potencial “sogro”. Era nada mais nada menos do que o comandante dos campos de Treblinka e Sobibor, enfim revelado em sua crueldade. Foi extraditado para a Alemanha, lá tendo sido julgado e condenado à morte. Ingrid, símbolo do amor e da vida, tinha desaparecido, dando lugar à morte enquanto expressão, por sua vez, do “mal existencial” ou do “mal absoluto”. Significa: fazer o mal pelo mal e não como mero contraponto ao bem.

A natureza humana expõe assim todos os seus enigmas. Uma pessoa em uma situação de normalidade, digamos, pode assumir uma outra faceta, a de alguém dedicado ao culto do ódio e à destruição total do outro. Perigo sempre presente, mormente em situações de guerra ou, mesmo, de calamidade, onde o que há de melhor e de pior no ser humano comparecem conjuntamente. O horror não cessa de estar presente!

Como uma empresa dos EUA moldou a imagem pejorativa da América Latina

Houve um tempo em que a United Fruit Company decidia quem morria e quem vivia nas duras vidas que seus trabalhadores enfrentavam nas plantações de frutas na América Latina. Horários de trabalho desregulados, jornadas extenuantes, condições insalubres. Um tempo em que juízes e políticos eram comprados para defender os interesses da empresa em vários países.

A UFC punha e tirava caudilhos do comando dos países cujos mercados queria dominar. Quando havia revoltas de trabalhadores, a empresa intervinha ao lado dos governos para que suas forças de segurança contivessem, muitas vezes com violência, os protestos por melhores salários e condições de vida.

Assim era a United Fruit Company, uma empresa americana criada em 1899 que moldou uma imagem pejorativa da América Latina para o planeta nos séculos 19 e 20.


Essa mesma imagem se manifesta até hoje no imaginário que o mundo tem sobre a região. Dela dependeram gerações de trabalhadores. E a ela se pode atribuir uma dura herança deixada por essas terras: a de que somos uma região de mão de obra barata, quase escrava, destinada a produzir complementos à economia mundial e exposta a uma intempérie política constante.

Foi por causa da UFC que os países do sul das Américas ficaram conhecidos com a infeliz expressão depreciativa "repúblicas das bananas", sinônimo de imaturidade política, corrupção e pobreza.

Nesta semana, uma notícia alentadora veio à tona. Um júri da Flórida decidiu que a Chiquita Brands (nome atual da UFC) é responsável por oito assassinatos cometidos por um grupo paramilitar de direita que a empresa ajudou a financiar em uma região fértil de cultivo de bananas entre 1997 e 2004. Isso mesmo, para defender terrenos de cultivo, a empresa deu dinheiro para as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), um grupo conhecido por terríveis massacres no interior do país.

A literatura da região tem sido um território fértil para a reflexão sobre os aspectos negativos que a United Fruit Company deixou em nossas culturas. Nada menos que quatro prêmios Nobel se dedicaram a chamar a atenção para as consequências de suas ações nos países latino-americanos.

No celebrado "Cem Anos de Solidão", Gabriel García Márquez romanceou a terrível repressão da empresa em La Ciénaga, em 1928, ocorrida quando ele tinha apenas um ano, mas cuja história amedrontava sua geração.

Em "Tempos Ásperos", o peruano Mario Vargas Llosa mostra como a UFC, aliada aos EUA —e por sua vez auxiliados pela ditadura do sangrento ditador dominicano Rafael Trujillo—, derrubaram o governo progressista de Jacobo Árbenz, em 1954.

Outros dois Nobel tratariam do tema. O guatemalteco Miguel Ángel Asturias, em sua "Trilogia Bananera", integrada pelas obras "Viento Fuerte", "El Papa Verde" e "Los Ojos de Los Enterrados", e o chileno Pablo Neruda, em "Calero, Trabajador del Banano".

Outras penas se dedicaram a expor os avanços da UFC na vida econômica e social das Américas. A do costa-riquenho Carlos Luis Fallas ("Mamita Yunai" e "Limón Blues"), a do mexicano Francisco Martín Moreno ("Las Cicatrices del Viento"), a do colombiano Álvaro Cepeda Samudio ("A Casa Grande") e a do hondurenho Ramón Amaya Amador ("Prisión Verde").

A leitura dessas obras traz a reflexão: a América Latina seria diferente se não tivesse passado tanto tempo sob a influência de uma empresa bananeira de tamanho poderio?

Só resta o longo prazo aos gaúchos

O Rio Grande do Sul ainda vive sob o signo da emergência. Vai demorar um tempo para que tudo seja limpo, o básico seja reconstruído e que a vida volte ao normal, com aquela rotina de escola, trabalho e lazer. Embora nem todos tenham sido atingidos do mesmo modo, há um sentimento comum de perda e haverá um empobrecimento maior do que havia antes da tragédia. Com tantas tarefas e problemas ali na esquina, fica difícil vislumbrar o que será o futuro. Mas, para superar de maneira estrutural o imenso desastre que ocorreu, a única saída é construir uma resposta de longo prazo.

Evidentemente que as questões de curto prazo vão dominar, por alguns meses, a agenda gaúcha. Não só porque é preciso reconstituir a economia e a normalidade da vida cotidiana, mas também porque os primeiros passos são importantes para os demais. Uma medida básica é garantir renda às pessoas para que não haja um colapso econômico.


A infraestrutura mais basilar deve ser reconstruída logo, para não inviabilizar todo o restante das atividades. E, mais importante ainda, deve-se definir, o quanto antes, qual será o modelo mais amplo de reconstrução, a ser implementado por um tempo bastante longo.

Em outras palavras, se mil passos começam no primeiro, o início também tem de vislumbrar aonde se quer chegar. Neste sentido, o planejamento da reconstrução vai passar basicamente por duas questões. A primeira diz respeito aos fins, e a segunda, aos meios. Começando pelas finalidades, elas dependem, antes de tudo, de um bom diagnóstico. Mesmo se sabendo da pressa em querer resolver uma situação dramática, não se pode colocar o carro na frente dos bois, o que em políticas públicas significa determinar as soluções antes de identificar claramente e de forma precisa os problemas.

O diagnóstico do desastre passa fortemente pela análise da infraestrutura destruída, sejam as pontes, estradas e mecanismos de contenção de enchentes, sejam as moradias, as empresas e equipamentos públicos (com destaque para as escolas). A reconstrução, porém, não é simplesmente para voltar ao ponto anterior. O principal diagnóstico é que, como há grandes possibilidades nos próximos anos de novos desastres climáticos, será necessário ter um novo modelo de ordenação espacial do Rio Grande do Sul, que significará ter edificações e formas de organização urbana capazes de lidar ou mitigar os efeitos da ação de fenômenos naturais.

Para além de uma nova forma de ordenar o território, o respeito a normas ambientais mais rígidas do que as atuais se tornará um imperativo para o Rio Grande do Sul. Esse diagnóstico é o coração da mudança depois do desastre. Neste momento de desgraça e luto, talvez a grande maioria já concorde com essa necessidade. Só que não custa lembrar como o passar do tempo pode levar ao desejo de se voltar à realidade anterior, um grande perigo que já aconteceu dezenas de vezes no Brasil após tragédias naturais. O problema é que os gaúchos estão condenados a pensar, desde já, no longo prazo.

Uma forma de consolidar um diagnóstico que aponte para as imensas transformações que terão de ocorrer no modelo de desenvolvimento gaúcho é trazer especialistas internacionais e ouvir os estudiosos brasileiros. Eles devem mostrar as tragédias naturais ocorridas em outros países e as medidas que foram tomadas, geralmente amplas e profundas, para se evitar a recorrência ou ao menos para mitigar os efeitos. Tais pesquisadores e gestores têm de apresentar os dados de forma bastante clara, realçando todas as consequências de se tentar permanecer no antigo normal. Além disso, a comunicação deve ser persuasiva e difundida a todos os grupos sociais, num processo que certamente não terminará nos próximos meses. É como na questão da vacinação: regularmente, será necessário ter campanhas públicas no Rio Grande do Sul para lembrar que os caminhos de mudança serão percorridos por muito tempo - novamente, a relevância do longo prazo.

A capacidade de os diagnósticos convencerem a sociedade gaúcha depende também dos prognósticos apresentados. Isso vai exigir a discussão com os atores sociais de um planejamento de ações, com objetivos bem definidos e metas claras, apresentando as consequências de não se tomar determinadas decisões. A temporalidade das medidas, com um calendário de curto, médio e longo prazo, é outro elemento central aqui, tanto para que todos reorganizem sua vida quanto para compreenderem a profundidade das mudanças. É preciso, ademais, realçar que novos comportamentos terão de ser adotados, sem que isso signifique necessariamente uma redução do bem-estar social. Até porque não há nada pior do que os efeitos de desastres naturais.

É provável que, no balanço final dos diagnósticos e prognósticos, se constate que a necessidade de transformação no padrão de desenvolvimento riograndense já deveria ter sido notada antes. O Rio Grande do Sul envelheceu, tem perdido população, vivido uma crise fiscal há décadas, mas seu modelo econômico e social conservou-se sem grandes propostas de inovação. Agora se sabe que sem uma âncora ambiental, que perpasse todas as esferas da vida social, será impossível criar um novo paradigma. Está aí a grande tarefa dos gaúchos: chegar efetivamente ao século XXI que suas elites e eleitores teimavam em não encarar.

As finalidades definidas após o desastre climático não serão alcançadas sem se construir os meios adequados. Entra aqui um conceito-chave para o sucesso da reconstrução gaúcha: a governança colaborativa. Ela tem como objetivo articular continuamente, de forma institucionalizada e mirando o longo prazo, o processo de transformação pós-tragédia. Colaboração, é bom que se diga, não significa ausência de conflito. Trata-se, ao contrário, de um modelo que busca construir os consensos possíveis, gerenciar de forma eficiente as divergências e convencer a todos que o modus operandi colaborativo é o mais efetivo na garantia de uma solução social ótima, que não é perfeita, mas que gera menos prejuízos a cada qual e ganhos comuns mais consistentes e de longa duração.

Os pontos estratégicos da governança colaborativa são a criação de arenas de discussão e deliberação, a montagem de um processo decisório transparente e capaz de reduzir as rusgas inúteis e, como corolário, a construção de uma cultura de confiança e colaboração entre atores que têm muitas vezes interesses e visões de mundo diferentes. Com o tempo, é possível descobrir pela prática colaborativa que há muitos caminhos possíveis que são essenciais a todos, pois o desastre climático realçou o quanto os gaúchos, mesmo com suas assimetrias de vários tipos, convivem na mesma embarcação riograndense. E esse barco vai afundar se não encontrarem formas de cooperar, especialmente com vistas a transformações de longo prazo.

Dois são os elos mais importantes desta modelagem governativa. O primeiro relaciona-se com a Federação. É fundamental construir um modo de colaboração institucionalizado entre a União, o estado e os municípios riograndenses. No curto prazo, o governo federal tem sido muito prestativo, muito mais do que foram outros em tragédias recentes - como o caso do governo Bolsonaro, mestre em se eximir das responsabilidades coletivas. No entanto, dadas as divergências políticas numa sociedade fortemente polarizada, ao que se soma o contexto eleitoral de 2024, é imprescindível construir uma solução que vislumbre decisões e formas de implementação para além dos mandatos dos atuais governantes. Modelos de conselhos federativos e/ou autoridades independentes são possíveis respostas, uma vez que são capazes de fortalecer a cooperação e gerar um pacto por uma transformação que vai exigir anos de ação federativa coordenada e muita generosidade colaborativa.

A colaboração terá ainda que guiar a relação do setor público com a sociedade e os entes privados. Há setores políticos hoje que jogam em prol do descrédito da política e dos governos, apostando que o caos e o voluntarismo produzirão uma solução melhor a uma tragédia gigantesca. Isso é pura ignorância ou uma forma populista de enganar os eleitores - aliás, Bolsonaro foi desastroso no maior problema coletivo de seu mandato, que foram as 700 mil mortes por covid-19. A reconstrução da Europa do pós-Guerra ou da Holanda pós-desastres naturais exigiu um governo forte, competente e entrelaçado com os atores sociais, por meio de muito diálogo baseado em diagnósticos sólidos e implementação azeitada. Ressalte-se esse último ponto: sem um modelo que fortaleça os mecanismos de implementação, os planos e a legitimidade da reconstrução se perdem ao longo do caminho.

O Rio Grande do Sul sempre se caracterizou por uma forte reverência ao passado. As histórias das guerras, os hinos, roupas e festas veneravam a história para construir a identidade gaúcha. Nada contra as tradições, que são importantes para encontrarmos nosso lugar no mundo. Mas o desastre climático de maio de 2024 condena o povo riograndense a viver, daqui para diante, em prol do longo prazo, que se torna a sua maior (ou única?) tábua de salvação. Só um futuro planejado e constantemente debatido pode evitar o retorno das tragédias de grandes proporções e recriar o Rio Grande do Sul do século XXI, aprendendo com os erros para ter novas glórias, que unam colorados e gremistas.

domingo, 16 de junho de 2024

Pensamento do Dia

 


Você realmente viveu melhor com Franco?

Por muitas razões, o Brasil acompanhou as atormentadas eleições europeias mais de perto do que no passado, com os olhos postos numa possível vitória da extrema direita. A primeira razão foi a situação política deste país onde, apesar da vitória do progressista Lula da Silva, a direita, a do líder golpista Jair Bolsonaro, continua a lutar para se manter viva.

O analista político Merval Pereira saiu imediatamente para tranquilizar as forças progressistas. Segundo ele, os resultados “não significam que a União Europeia esteja à beira de ser dominada pela direita nem que o mundo esteja a caminhar inexoravelmente nessa direção”. Ele não nega, porém, que o resultado “poderá ter consequências no Brasil, que desde 2018 é palco de uma disputa entre esquerda e direita, representando um retrocesso político com graves consequências”.

O eco que hoje ressoa novamente no Brasil, no sentido de que durante a ditadura as pessoas viviam melhor e com maior segurança, me fez lembrar – e o terá feito naqueles como eu que viveram a grave Guerra Civil e os 40 anos de obscurantismo franquista – que o que ressoa é a sombria litania de que “com Franco as pessoas viviam melhor”. É repetido por quem não sofreu as violências e os horrores daquela ditadura que parece querer ressuscitar.

Não, com Francisco Franco as coisas eram sempre piores porque os sinos do medo e da obediência ao regime tocavam à custa da própria vida. Numa folha de papel que foi entregue ao generalíssimo junto com a xícara de café depois do almoço, estavam os nomes dos que seriam mortos e Franco se divertiu desenhando uma flor ao lado de cada um dos condenados à morte. Ironia terrível!

Foi violência com tons macabros de vingança. Lembro-me que um amigo meu, advogado de Madrid, me disse com horror que lhe telefonaram para o caso de querer participar naquela manhã da tortura do homem que tinha sido seu amigo e depois se distanciaram. Eles lhe deram a entender que ele teve a oportunidade de se vingar participando pessoalmente do rito de tortura de seu ex-amigo.

Talvez por essas lembranças e outras que prefiro não reviver, sinto um arrepio ao ouvir hoje que a vida era melhor com Franco. E não se trata de discutir se uma direita democrática é melhor para a própria democracia do que uma esquerda corrupta. O que não há dúvida é que a liberdade, de expressão e de pensamento, será sempre melhor que a ditadura de qualquer cor.

Às vezes, aqui no Brasil, jovens jornalistas que conhecem minha longa trajetória jornalística me perguntam como era a vida na Espanha na época do líder, abençoado até pelo Vaticano com os privilégios concedidos àquele regime de terror que se apresentava como campeão do catolicismo.

Hoje vou contar-vos uma anedota que vivi em Madrid, quando em 1966 o regime de Franco convocou um referendo sobre o regime para comemorar os 25 anos da Guerra Civil. O plebiscito obteve naturalmente 95,90% de apoio ao líder. Foi então que vivi um momento de preocupação com a polícia franquista. Eu vim da Itália. Nesse ano, o toureiro El Viti ganhou o prêmio anual e fui convidado a entregar-lhe o prêmio no tradicional jantar desse evento em Madrid. Pediram-me para dizer duas palavras ao entregar-lhe o troféu. Por toda a cidade, os cartazes gigantes de “25 anos de paz” chamaram a atenção.

Contei aos presentes naquele jantar que encontrei uma cidade coberta de cartazes que diziam: “25 anos de paz”, mas que o importante é que foram “25 anos de paz” e não da ordem”. Quando saí do jantar, dois policiais estavam me esperando à porta. Eles queriam que eu explicasse melhor o que eu disse. Tentei explicar-lhes a diferença entre ordem e paz, que a ordem se impõe com a força e a paz se consegue com a liberdade. Eles olharam para mim como se eu fosse um marciano. Um dos policiais me disse para ser mais claro: “Eu quis dizer que enquanto a paz se consegue com a liberdade, a ordem se impõe com a força”. Eles não devem ter entendido. Perguntaram-me o que fiz em Roma. Eu disse que estudei filosofia. Os dois policiais se entreolharam e me soltaram.

Hoje, a diferença entre paz e ordem permanece viva como duas categorias que definem a existência e explicam em parte a turbulência política no mundo entre esquerda e direita, que lutam para competir. É verdade, talvez, que no tempo de Franco as pessoas saíam às ruas sem medo até ao amanhecer. A ordem estava garantida. A punição para quem tentasse quebrá-la era paga com tortura e fuzilamentos sumários.

É verdade que hoje o ressurgimento da extrema direita se deve em parte ao fato de a democracia ter adormecido um pouco e relegado para segundo plano o problema da violência que assola o mundo e da qual essa extrema direita, a da sua paixão por armas, dá origem a novas tentações de impor a ordem à custa do sacrifício da paz.

Apesar de toda a turbulência política que abala perigosamente o mundo como um todo, tal como quando eu era ainda jovem, continuo a acreditar que a paz só pode ser construída com o diálogo e a colaboração entre as pessoas e não com os demônios do medo e da violência.

Não! Com Franco as pessoas viviam pior, com maior violência, com mais fome e sem horizontes de esperança de poder saborear os frutos maduros da liberdade.
Juan Arias

Desmemória coletiva

Ivan Lessa se queixava de que, no Brasil, a cada 15 anos esquecemos o que aconteceu nos 15 anos anteriores. Ivan, sempre tão rigoroso com o Brasil. Mas, digo eu, em outros lugares, até mais cultos, não é muito melhor. Só varia o tempo da desmemória. Muito do que de pior acontece hoje no mundo tem como causa o fato de grande parte da população ignorar o passado de seu país, dando de barato certos privilégios e conquistas e achando que é preciso mudar tudo.

Essa desmemória parece coletiva na Europa, com a extrema direita a ponto de tornar-se a segunda força política do continente. Já está no poder na Hungria, Eslováquia, Itália, Finlândia, República Tcheca e Países Baixos e começa a chegar perto em Portugal, Áustria, França, Espanha e, incrível, a Alemanha. Em todos, a mesma receita: populismo, nacionalismo, negacionismo, xenofobia, racismo, homofobia, ódio ao imigrante e slogans neonazistas.

O discurso com que seus líderes se vendem como solução para os problemas econômicos de seus países se baseia em demagogia, dados falsos e no desconhecimento da história pela população mais jovem. Em Portugal, o grosso dos adeptos do Chega, novo partido de extrema direita, tem entre 18 e 34 anos. Como vão se lembrar de que, antes de 25 de abril de 1974, seu país era o mais triste e atrasado da Europa?

No Brasil, os seguidores de Bolsonaro acreditam em tudo o que ele diz sobre os 21 anos da ditadura e sonham com a volta de um país que não conheceram e nunca existiu. É normal. Nasce um otário por minuto e o ser humano tem uma irresistível tendência a ser tapeado.

Mais incrível ainda é o culto a Donald Trump nos EUA. Nesse caso, trata-se de uma desmemória de quase 250 anos. Os constituintes de 1776, que julgavam estar fundando uma democracia para sempre, não contavam com um celerado que se valeria dela para tentar destruí-la e seria apoiado por milhões.

Eles já passaram!

Custa escrever, custa acreditar, mas eles já passaram! É difícil reconhecer o que não queremos ver, porque constitui uma derrota e uma ameaça. Estamos em estado de negação. Este é um fenómeno internacional. O que começou por ser “impossível”, “um fenómeno residual”, “só uma minoria”, passou a estar omnipresente no espaço público, contaminou as ruas, os media, a Assembleia da República. Condiciona eleições, impõe agendas políticas e mediáticas, um clima de tensão e de agressividade permanente e designação de bodes expiatórios.

A extrema-direita tem o talento cobarde de atacar sempre, prioritariamente, as populações mais vulneráveis, com menos possibilidade de organização, minorias com pouco ou nenhum poder, que por vezes se encontram em modo sobrevivência, sem tempo, energia ou recursos para travar lutas de defesa da sua dignidade, igualdade e mesmo segurança. Foi de segurança, aliás, que uma pessoa migrante, originária do Bangladesh, trabalhador em estufas como cortador de cravos, falou esta semana publicamente com André Ventura. Desesperado, com a voz embargada de emoção, disse ao líder da extrema-direita portuguesa ter mandado embora a sua filha pequena nascida em Portugal por ter medo, insistindo no facto de Ventura passar o tempo a dizer coisas rascistas.

Muito se tem escrito sobre a psicologia dos racistas, sobre quem odeia o outro, muitas vezes até para desculpabilizar ou relativizar o racismo. Mas raramente se fala do que sentem as pessoas discriminadas que são alvo de ódio racista, xenófobo, misógino ou LGBTfóbico. A pessoa que interpelou André Ventura deu-nos uma amostra do que sente uma pessoa vítima de discurso de ódio. Os efeitos negativos do discurso racista, de ódio “são reais e imediatos para as vítimas de propaganda de ódio feroz provocando sintomas fisiológicos e angústia emocional, que variam desde um medo no estômago até um pulso acelerado e a dificuldade em respirar, pesadelos, transtorno pós-traumático, hipertensão, psicose e suicídio”, escreve Mari J. Matsuda no artigo “Public response to racist speech: considering the victim’s story” (1989). Não é preciso ser vítima de violência física para sentir os efeitos do racismo no seu corpo. As palavras, os discursos que conduzem depois a mão de quem passa para a violência física já são armas por si só.

O discurso de ódio não serve somente para que os grupos que o propagam criem coesão entre si, nem para fixar a identidade dos sujeitos alvos do ódio, “o ódio também atua desfazendo o mundo do outro através da dor”, escreve a filósofa Sara Ahmed em The Cultural Politics of Emotion (2004). Essa dor pode ser física, mas também mental e moral com repercussões nefastas sobre a saúde das pessoas vítimas do discurso de ódio. Além disso, as vítimas são, como descreve ainda Mari J. Matsuda, “restringidas na sua liberdade pessoal” e recorrem, para não receber mensagens de ódio, a estratégias de evitamento que põem em causa as suas vidas, como abandonar empregos, casas, renunciar à educação, evitar determinados locais públicos ou restringir o seu próprio exercício dos direitos de expressão. “Por mais que se tente resistir a uma peça de propaganda de ódio”, explica Matsuda, “o efeito na autoestima e no sentimento de segurança pessoal é devastador”.

Geralmente, os seres humanos não gostam, e têm medo, de ser odiados, desprezados ou isolados. “Por mais irracional que seja o discurso racista, ele acerta no local emocional onde sentimos mais dor”, sublinha Matsuda, que insiste no facto de esta sensação de solidão ser também sentida consoante a resposta institucional, do Governo, da polícia ou dos tribunais. A forma como os polícias preferiram no 10 de junho proteger um ajuntamento neonazi enquanto reprimiam com violência manifestantes antirracistas é só um dos exemplos do abandono institucional. Eles já passaram! E, por isso, o tempo da prevenção já passou, devemos passar à fase de organização para um ataque frontal ao problema e o primeiro passo passa por admitir: eles já passaram!
Luísa Semedo

Kharkiv: o quotidiano no front da guerra da Ucrânia

A primeira coisa que chama a atenção na cidade de Kharkiv, localizada no nordeste da Ucrânia, é o grande número de bandeiras nacionais alinhadas nas ruas: há mais aqui do que na capital Kiev.

Os carros passam e os bondes velhos e empoeirados chacoalham em seus trilhos, mas a primeira impressão de calma e tranquilidade não dura muito. O visitante logo se dá conta dos muitos pontos de controle, obstáculos contra tanques e prédios demolidos, lembretes da guerra da Rússia na Ucrânia, agora em seu terceiro ano, e do papel de Kharkiv como uma cidade na linha de frente.

Em meados de 2024, a segunda maior cidade ucraniana é como uma ferida aberta, que a Rússia continua a atacar com mísseis, drones e bombas quase diariamente. A paisagem urbana é marcada por janelas fechadas com tábuas, nas ruas principais numerosos prédios tiveram seus andares superiores destruídos.

Uma casa seriamente danificada e queimada ainda guarda um resquício de como a vida deve ter sido antes da guerra: Uma placa amigável que diz: "Entre para tomar um café".

A maior parte dessa destruição ocorreu durante o primeiro ano da guerra, quando as Forças Armadas russas avançaram pela primeira vez para os arredores de Kharkiv, antes de serem forçadas a recuar. As ruínas de uma escola que oferecia aulas avançadas de alemão são cicatrizes do início de 2022, quando as unidades especiais russas foram expulsas com armamento pesado.

Uma placa em alemão e ucraniano ainda está pendurada acima da antiga entrada da escola: "Sucesso no aprendizado, sucesso na vida". Essa é uma das muitas escolas de Kharkiv que se tornaram alvo de guerra.


Muitas das lojas, cafés e bares da cidade foram reabertos, embora os fregueses e clientes continuem sendo raros. Muitos edifícios têm placas indicando que estão à venda ou para alugar. As ruas se esvaziam ao cair da noite. O metrô só funciona até 21h30, e o toque de recolher começa às 23h00, uma hora mais cedo do que na capital.

Os bombardeios russos geralmente começam por volta da meia-noite. Segundo os moradores, a cidade está sendo atacada sistematicamente e "de acordo com o plano".

No entanto, desde o início de junho o bombardeio diminuiu consideravelmente. A maioria aqui acredita que isso se deve ao fato de os Estados Unidos e outros aliados ocidentais terem permitido à Ucrânia disparar as armas que eles fornecem contra alvos em solo russo próximo à fronteira da Ucrânia.

A mídia ocidental noticiou que a Ucrânia já usou as armas contra a cidade russa de Belgorod, atingindo uma bateria de defesa aérea russa S-300, um tipo de sistema em geral usado para lançar mísseis.

Restos desses sistemas podem ser encontrados no "cemitério de foguetes russos". Kharkiv abriga o maior cemitério de foguetes da Ucrânia, com destroços de mais de mil mísseis, que tem atraído a atenção internacional. Os visitantes podem ver cilindros dos sistemas russos de lançamento múltiplo de foguetes Smerch e Uragan, os sistemas de mísseis S-300 e Iskander e outros armamentos que a Rússia usou contra a região.

Guardas vigiam o depósito, só permitindo a entrada a quem venha acompanhado por um representante do promotor público local. Os cerca de mil projéteis coletados aqui têm o objetivo de servir como prova das atrocidades russas em julgamentos na Ucrânia e no exterior.

"Todos os foguetes aqui, incluindo os mísseis de cruzeiro, custam milhões de dólares", explica Dmytro Chubenko, porta-voz da promotoria regional de Kharkiv. As marcações e abreviações ainda existentes poderiam ajudar a provar a participação da Rússia na construção e disparo das armas. Além disso, elas contêm informações codificadas sobre o modelo, a fábrica e a unidade militar de onde se originaram, acrescenta Chubenko.

Como a Rússia destruiu quase toda a infraestrutura de energia de Kharkiv, os habitantes da cidade e da região dependem de geradores a diesel.

Pelas ruas, se vê pouca gente, há mais estudantes que aparentemente se preparam para se matricular. No entanto é difícil acreditar que a cidade abrigue mais de 1 milhão, tanto residentes quanto deslocados internos da zona de guerra.

Como muitos dos homens da cidade lutam na linha de frente, a cidade precisa de trabalhadores. Na entrada de uma estação de metrô, uma placa anuncia: "Kharkiv precisa de motoristas para os transportes públicos". Os futuros funcionários são atraídos com a promessa de não serem convocados para o Exército, embora na prática não haja cem por cento de garantia.

Os moradores de Kharkiv dizem que se acostumaram com os ataques aéreos, os bombardeios e as constantes ameaças às suas vidas. Poucos acreditam que será bem-sucedida a ofensiva mais recente da Rússia na região, que garantiu duas posições ao longo da linha de frente para as Forças Armadas russas. Mas eles admitem que as linhas de defesa da Ucrânia foram pegas despreparadas.

Alguns permanecem na cidade para cuidar dos pais idosos; outros se recusam a deixar suas casas e todos os objetos pessoais que juntaram ao longo dos anos. Outros, ainda, querem ficar para ajudar as Forças Armadas ucranianas na região.

Um homem de 25 anos conta que se mudou recentemente para a cidade a trabalho: "Gosto da gente de Kharkiv, ela é especial." Ao mesmo tempo, admite que, devido ao constante bombardeio russo, ele se pergunta se todos os seus colegas vão aparecer para trabalhar, a cada manhã.

Sua acompanhante relata que retornou a Kharkiv depois de ter fugido em 2022. Em sua opinião, o maior obstáculo atual é a exaustão mental, passados três anos de guerra.

Muitos admitem que o medo domina Kharkiv, mas ressalvam que um espírito de desafio impede que se embora. Uma vendedora aponta para os escombros de um prédio demolido numa rua próxima: "Fechamos às 15h30 e, há alguns dias, um míssil atingiu o local às 16h."

O espírito de resistência de Kharkiv se expressa em seus parques bem cuidados e praças limpas, ou nas tábuas cuidadosamente pintadas nas janelas das casas e nas placas que dizem: "Estamos trabalhando". Para onde quer que se olhe, os moradores provam que não vão desistir de sua cidade.

"Quando um míssil atinge a cidade, a gente se agacha, sacude a poeira e continua", conta a vendedora. Sua loja vende doces, entre os quais caixas de chocolates decoradas com uma vista da cidade, a bandeira ucraniana e os dizeres: "Kharkiv, cidade de heróis".