quarta-feira, 17 de dezembro de 2025
Litania dos pobres
Os miseráveis, os rotos
São as flores dos esgotos.
São espectros implacáveis
Os rotos, os miseráveis.
São prantos negros de furnas
Caladas, mudas, soturnas.
São os grandes visionários
Dos abismos tumultuários.
As sombras das sombras mortas,
Cegos a tatear nas portas.
Procurando o céu, aflitos
E varando o céu de gritos.
Faróis à noite apagados
Por ventos desesperados.
Inúteis, cansados braços
Pedindo amor aos espaços.
Mãos inquietas, estendidas
Ao vão deserto das vidas.
Figuras que o Santo Ofício
Condena a feroz suplício.
Arcas soltas ao nevoento
Dilúvio do esquecimento.
Perdidas na correnteza
Das culpas da natureza.
Ó pobres! Soluços feitos
Dos pecados imperfeitos!
Arrancadas amarguras
Do fundo das sepulturas.
Imagens dos deletérios
Imponderáveis mistérios.
Bandeiras rotas, sem nome,
Das barricadas da fome.
Bandeiras estraçalhadas
Das sangrentas barricadas.
Fantasmas vãos, sibilinos
Da caverna dos destinos!
Ó pobres! O vosso bando
É tremendo, é formidando!
Ele já marcha crescendo,
O vosso bando tremendo…
Ele marcha por colinas,
Por montes e por campinas.
Nos areais e nas serras
Em hostes como as de guerras.
Cerradas legiões estranhas
A subir, descer montanhas.
Como avalanches terríveis
Enchendo plagas incríveis.
Atravessa já os mares,
Com aspectos singulares.
Perde-se além nas distâncias
A caravana das ânsias.
Perde-se além na poeira,
Das esferas na cegueira.
Vai enchendo o estranho mundo
Com o seu soluçar profundo.
Como torres formidandas
De torturas miserandas.
E de tal forma no imenso
Mundo ele se torna denso.
E de tal forma se arrasta
Por toda a região mais vasta.
E de tal forma um encanto
Secreto vos veste tanto.
E de tal forma já cresce
O bando, que em vós parece,
Ó pobres de ocultas chagas
Lá das longínquas plagas!
Parece que em vós há sonho
E o vosso bando é risonho.
Que através das rotas vestes
Trazeis delícias celestes.
Que as vossas bocas, de um vinho
Prelibam todo o carinho…
Que os vossos olhos sombrios
Trazem raros amavios.
Que as vossas almas trevosas
Vêm cheias de odor das rosas.
De torpores, de indolências
E graças e quint’essências.
Que já livres de martírios
Vêm festonadas de lírios.
Vêm nimbadas de magia,
De morna melancolia !
Que essas flageladas almas
Reverdecem como palmas.
Balanceadas no letargo
Dos sopros que vêm do largo…
Radiantes de ilusionismos,
Segredos, orientalismos.
Que como em águas de lagos
Boiam nelas cisnes vagos…
Que essas cabeças errantes
Trazem louros verdejantes.
E a languidez fugitiva
De alguma esperança viva.
Que trazeis magos aspeitos
E o vosso bando é de eleitos.
Que vestes a pompa ardente
Do velho sonho dolente.
Que por entre os estertores
Sois uns belos sonhadores.
Cruz e Sousa (1861/1898), "Faróis"
São as flores dos esgotos.
São espectros implacáveis
Os rotos, os miseráveis.
São prantos negros de furnas
Caladas, mudas, soturnas.
São os grandes visionários
Dos abismos tumultuários.
As sombras das sombras mortas,
Cegos a tatear nas portas.
Procurando o céu, aflitos
E varando o céu de gritos.
Faróis à noite apagados
Por ventos desesperados.
Inúteis, cansados braços
Pedindo amor aos espaços.
Mãos inquietas, estendidas
Ao vão deserto das vidas.
Figuras que o Santo Ofício
Condena a feroz suplício.
Arcas soltas ao nevoento
Dilúvio do esquecimento.
Perdidas na correnteza
Das culpas da natureza.
Ó pobres! Soluços feitos
Dos pecados imperfeitos!
Arrancadas amarguras
Do fundo das sepulturas.
Imagens dos deletérios
Imponderáveis mistérios.
Bandeiras rotas, sem nome,
Das barricadas da fome.
Bandeiras estraçalhadas
Das sangrentas barricadas.
Fantasmas vãos, sibilinos
Da caverna dos destinos!
Ó pobres! O vosso bando
É tremendo, é formidando!
Ele já marcha crescendo,
O vosso bando tremendo…
Ele marcha por colinas,
Por montes e por campinas.
Nos areais e nas serras
Em hostes como as de guerras.
Cerradas legiões estranhas
A subir, descer montanhas.
Como avalanches terríveis
Enchendo plagas incríveis.
Atravessa já os mares,
Com aspectos singulares.
Perde-se além nas distâncias
A caravana das ânsias.
Perde-se além na poeira,
Das esferas na cegueira.
Vai enchendo o estranho mundo
Com o seu soluçar profundo.
Como torres formidandas
De torturas miserandas.
E de tal forma no imenso
Mundo ele se torna denso.
E de tal forma se arrasta
Por toda a região mais vasta.
E de tal forma um encanto
Secreto vos veste tanto.
E de tal forma já cresce
O bando, que em vós parece,
Ó pobres de ocultas chagas
Lá das longínquas plagas!
Parece que em vós há sonho
E o vosso bando é risonho.
Que através das rotas vestes
Trazeis delícias celestes.
Que as vossas bocas, de um vinho
Prelibam todo o carinho…
Que os vossos olhos sombrios
Trazem raros amavios.
Que as vossas almas trevosas
Vêm cheias de odor das rosas.
De torpores, de indolências
E graças e quint’essências.
Que já livres de martírios
Vêm festonadas de lírios.
Vêm nimbadas de magia,
De morna melancolia !
Que essas flageladas almas
Reverdecem como palmas.
Balanceadas no letargo
Dos sopros que vêm do largo…
Radiantes de ilusionismos,
Segredos, orientalismos.
Que como em águas de lagos
Boiam nelas cisnes vagos…
Que essas cabeças errantes
Trazem louros verdejantes.
E a languidez fugitiva
De alguma esperança viva.
Que trazeis magos aspeitos
E o vosso bando é de eleitos.
Que vestes a pompa ardente
Do velho sonho dolente.
Que por entre os estertores
Sois uns belos sonhadores.
Cruz e Sousa (1861/1898), "Faróis"
Gaza e o preço da nossa indiferença
A Faixa de Gaza tornou-se o espelho mais brutal da falência moral da comunidade internacional. O que ali se vive, supera a linguagem diplomática e dissolve qualquer eufemismo político. Chamemos pelo nome, trata-se de um massacre. Um massacre prolongado, sistemático e amplamente documentado, que transforma civis em alvos, hospitais em ruínas e bairros inteiros em lembranças de um lugar que já não existe.
A resposta israelita ao ataque de 7 de outubro foi apresentada como uma operação de legítima defesa. Contudo, a escala da destruição, o colapso completo dos serviços essenciais, a deslocação forçada de quase toda a população e o número inaceitável de mortos civis mostram que esta narrativa, repetida incansavelmente, já não suporta os factos. O direito internacional não desaparece em tempos de medo. Muito menos autoriza punição coletiva e é exatamente isso que se observa quando água, eletricidade, alimentos, medicamentos e corredores humanitários são transformados em instrumentos de pressão militar.
Paralelamente, assiste-se a outro processo silencioso, mas igualmente devastador, o massacre da narrativa. A linguagem torna-se arma quando suaviza a violência, quando substitui “crianças mortas” por “danos colaterais”, quando trata zonas densamente povoadas como “infraestruturas terroristas” ou quando relativiza ataques a escolas e hospitais com explicações que mudam consoante a conveniência política. O controlo do discurso permite controlar a indignação pública, e isso explica por que razão parte do mundo assiste a esta catástrofe com desconforto, mas não com urgência moral.
A construção de um consenso cúmplice é agravada pela posição ambígua, quando não abertamente permissiva, de várias democracias ocidentais. Países que se apresentam como guardiões dos direitos humanos continuam a fornecer apoio político, militar e diplomático a uma campanha que viola esses mesmos princípios. Ao fazê-lo, corroem a legitimidade da ordem internacional baseada em regras e reforçam a perceção de que o valor da vida é variável: umas são choradas, outras contabilizadas.
Importa sublinhar que defender a vida dos civis palestinianos não implica negar o sofrimento dos civis israelitas, não há competição na dor. O que há é uma responsabilidade ética elementar, a de reconhecer que nenhuma sociedade. por mais traumatizada que esteja, tem o direito de destruir outra. Manter esta ideia é essencial para recusar a lógica desumanizadora que transforma populações inteiras em obstáculos a eliminar.
O que se vive hoje em Gaza não pode ser tratado como um episódio inevitável de um conflito insolúvel. É uma catástrofe humana que exige ação política imediata, cessar-fogo permanente, libertação de reféns, acesso humanitário pleno, fim do cerco e mecanismos credíveis de responsabilização por crimes de guerra. Estas medidas não são radicais, são o mínimo ético exigível.
A maior derrota não será apenas a destruição de Gaza, será permitir que este massacre se torne normal, que a dor alheia deixe de nos comover e que a vida humana perca o seu valor universal. Quando o mundo aceita o inaceitável, deixa de ser apenas espectador, torna-se cúmplice.
A resposta israelita ao ataque de 7 de outubro foi apresentada como uma operação de legítima defesa. Contudo, a escala da destruição, o colapso completo dos serviços essenciais, a deslocação forçada de quase toda a população e o número inaceitável de mortos civis mostram que esta narrativa, repetida incansavelmente, já não suporta os factos. O direito internacional não desaparece em tempos de medo. Muito menos autoriza punição coletiva e é exatamente isso que se observa quando água, eletricidade, alimentos, medicamentos e corredores humanitários são transformados em instrumentos de pressão militar.
Paralelamente, assiste-se a outro processo silencioso, mas igualmente devastador, o massacre da narrativa. A linguagem torna-se arma quando suaviza a violência, quando substitui “crianças mortas” por “danos colaterais”, quando trata zonas densamente povoadas como “infraestruturas terroristas” ou quando relativiza ataques a escolas e hospitais com explicações que mudam consoante a conveniência política. O controlo do discurso permite controlar a indignação pública, e isso explica por que razão parte do mundo assiste a esta catástrofe com desconforto, mas não com urgência moral.
A construção de um consenso cúmplice é agravada pela posição ambígua, quando não abertamente permissiva, de várias democracias ocidentais. Países que se apresentam como guardiões dos direitos humanos continuam a fornecer apoio político, militar e diplomático a uma campanha que viola esses mesmos princípios. Ao fazê-lo, corroem a legitimidade da ordem internacional baseada em regras e reforçam a perceção de que o valor da vida é variável: umas são choradas, outras contabilizadas.
Importa sublinhar que defender a vida dos civis palestinianos não implica negar o sofrimento dos civis israelitas, não há competição na dor. O que há é uma responsabilidade ética elementar, a de reconhecer que nenhuma sociedade. por mais traumatizada que esteja, tem o direito de destruir outra. Manter esta ideia é essencial para recusar a lógica desumanizadora que transforma populações inteiras em obstáculos a eliminar.
O que se vive hoje em Gaza não pode ser tratado como um episódio inevitável de um conflito insolúvel. É uma catástrofe humana que exige ação política imediata, cessar-fogo permanente, libertação de reféns, acesso humanitário pleno, fim do cerco e mecanismos credíveis de responsabilização por crimes de guerra. Estas medidas não são radicais, são o mínimo ético exigível.
A maior derrota não será apenas a destruição de Gaza, será permitir que este massacre se torne normal, que a dor alheia deixe de nos comover e que a vida humana perca o seu valor universal. Quando o mundo aceita o inaceitável, deixa de ser apenas espectador, torna-se cúmplice.
Um inferno demográfico
“Inverno demográfico”, que se tornou uma expressão com a qual passámos a conviver, é uma metáfora que indica uma tal diminuição da taxa de fecundidade que a população entra em decréscimo.
No tempo em que a população do planeta estava em aumento acelerado e ainda não se tinham tornado completamente caducas as previsões “científicas” de Malthus, segundo as quais iríamos atingir uma situação em que faltariam ao planeta os recursos mínimos para alimentar tanta gente, o que agora é designado como “inverno demográfico” era uma aspiração primaveril. Os processos drásticos de engenharia social na China para evitar o crescimento da população foram uma experiência exemplar, pelos efeitos negativos que produziram e que o governo chinês tenta corrigir, recuperando o imperativo que diz: “Crescei e multiplicai-vos”. Mas parece que nem assim está a conseguir restabelecer a quantidade de força de trabalho necessária para alimentar a sua economia, que já não cresce como antigamente.
Uma observação empírica de quem vive numa cidade como Lisboa é a de que os bebés e as crianças quase desapareceram. Os espanhóis, os italianos e muitos europeus dizem o mesmo das cidades onde habitam. É verdade que as crianças e até os adolescentes saem pouco de casa (a não ser no carro dos pais para ir à escola e regressar), razão suficiente para não serem vistos na rua. Mas se fizermos um pequeno inquérito, como o que já fiz, olhando à minha volta, para o universo de amigos e amigas, verificamos que muitos não têm filhos e quando têm ficam-se pelo filho único — essa instituição narcísica do nosso tempo. E na sua maioria já se divorciaram uma ou duas vezes e alguns até regressaram à casa dos pais. Perante este panorama, dá vontade de rir quando ouvimos os políticos falar nas “famílias”.
Do processo demográfico que já se estende a quase todo o planeta, podemos deduzir esta regra: à medida que as populações vão ascendendo no bem-estar económico e social, diminuem os incentivos para ter filhos. É verdade que é cada vez menor a homogeneidade social, já que onde cresce a riqueza também cresce a pobreza. Mas o ambiente assim criado faz com que actualmente aos que não querem ter filhos se juntem os que não podem ter. Este fenómeno, como tudo o resto, também está globalizado: o que começou no hemisfério Norte estende-se agora para o Sul.
Mas a noção de “inverno demográfico” só tem sentido em função de um regime económico cronofágico, isto é, que devora o tempo e antecipa o futuro sob a forma de dívida. Cada um de nós está em dívida, e essa dívida só pode ser paga por aqueles que vão nascer. E como não é possível parar este processo de endividamento a não ser por ação de uma enorme catástrofe, a corrida continua em grande velocidade mesmo que saibamos que se caminha para o desastre.
A diminuição da população seria uma realidade a festejar se não estivéssemos a consumir tempo futuro. Assim, só os nascituros nos podem salvar. E estes, uma vez nascidos, têm de procurar salvação nos novos nascituros. Eis como uma expressão que inundou a nossa linguagem e parece descrever um estado de coisas objetivo — “inverno demográfico” — tem um sentido ideológico muito forte, oculta a realidade e constrói um cenário baseado numa falsa construção.
É verdade que, para além da cronofagia, há outros factores que desequilibram a balança demográfica (por exemplo, o aumento da esperança de vida). Mas que até um governo neofascista, como é, em Itália, o de Giorgia Meloni, tenha de abrir portas à imigração porque os italianos estão a desaparecer e os que existem não asseguram os serviços que permitem o país subsistir, mostra que nalguns casos já estamos a entrar no estado de catástrofe. Devemos perguntar: os imigrantes vão finalmente passar da condição de indesejáveis para a categoria de salvadores? Nem pensar nisso. Os imigrantes são considerados como um fator logístico, à semelhança das máquinas, das ferramentas, das infra-estruturas. Eles estão em todo o lado em que o trabalho físico não pôde ainda ser eliminado. Mas no fundo são invisíveis. Tão invisíveis como esses novos escravos que entregam refeições ao domicílio. Não é que uns e outros não andem nas mesmas ruas onde nós andamos. Mas foram relegados para a invisibilidade.
Outra lição do “inverno demográfico”: ao decrescimento da população não corresponde um decréscimo da economia, até porque isso significa “crise”. Pelo contrário, enquanto de um lado há paragem, do outro continua a aceleração. Devemos então concluir: afinal, o aumento da população não é um verdadeiro problema. Quantos milhares de africanos são precisos para perfazerem uma pegada equivalente à de Elon Musk? O seu peso já é quase o de um continente inteiro. E virá o tempo em que, observando a Terra do seu observatório espacial, ouvirá uma voz que lhe diz: “Um dia, tudo isto será teu”.
No tempo em que a população do planeta estava em aumento acelerado e ainda não se tinham tornado completamente caducas as previsões “científicas” de Malthus, segundo as quais iríamos atingir uma situação em que faltariam ao planeta os recursos mínimos para alimentar tanta gente, o que agora é designado como “inverno demográfico” era uma aspiração primaveril. Os processos drásticos de engenharia social na China para evitar o crescimento da população foram uma experiência exemplar, pelos efeitos negativos que produziram e que o governo chinês tenta corrigir, recuperando o imperativo que diz: “Crescei e multiplicai-vos”. Mas parece que nem assim está a conseguir restabelecer a quantidade de força de trabalho necessária para alimentar a sua economia, que já não cresce como antigamente.
Uma observação empírica de quem vive numa cidade como Lisboa é a de que os bebés e as crianças quase desapareceram. Os espanhóis, os italianos e muitos europeus dizem o mesmo das cidades onde habitam. É verdade que as crianças e até os adolescentes saem pouco de casa (a não ser no carro dos pais para ir à escola e regressar), razão suficiente para não serem vistos na rua. Mas se fizermos um pequeno inquérito, como o que já fiz, olhando à minha volta, para o universo de amigos e amigas, verificamos que muitos não têm filhos e quando têm ficam-se pelo filho único — essa instituição narcísica do nosso tempo. E na sua maioria já se divorciaram uma ou duas vezes e alguns até regressaram à casa dos pais. Perante este panorama, dá vontade de rir quando ouvimos os políticos falar nas “famílias”.
Do processo demográfico que já se estende a quase todo o planeta, podemos deduzir esta regra: à medida que as populações vão ascendendo no bem-estar económico e social, diminuem os incentivos para ter filhos. É verdade que é cada vez menor a homogeneidade social, já que onde cresce a riqueza também cresce a pobreza. Mas o ambiente assim criado faz com que actualmente aos que não querem ter filhos se juntem os que não podem ter. Este fenómeno, como tudo o resto, também está globalizado: o que começou no hemisfério Norte estende-se agora para o Sul.
Mas a noção de “inverno demográfico” só tem sentido em função de um regime económico cronofágico, isto é, que devora o tempo e antecipa o futuro sob a forma de dívida. Cada um de nós está em dívida, e essa dívida só pode ser paga por aqueles que vão nascer. E como não é possível parar este processo de endividamento a não ser por ação de uma enorme catástrofe, a corrida continua em grande velocidade mesmo que saibamos que se caminha para o desastre.
A diminuição da população seria uma realidade a festejar se não estivéssemos a consumir tempo futuro. Assim, só os nascituros nos podem salvar. E estes, uma vez nascidos, têm de procurar salvação nos novos nascituros. Eis como uma expressão que inundou a nossa linguagem e parece descrever um estado de coisas objetivo — “inverno demográfico” — tem um sentido ideológico muito forte, oculta a realidade e constrói um cenário baseado numa falsa construção.
É verdade que, para além da cronofagia, há outros factores que desequilibram a balança demográfica (por exemplo, o aumento da esperança de vida). Mas que até um governo neofascista, como é, em Itália, o de Giorgia Meloni, tenha de abrir portas à imigração porque os italianos estão a desaparecer e os que existem não asseguram os serviços que permitem o país subsistir, mostra que nalguns casos já estamos a entrar no estado de catástrofe. Devemos perguntar: os imigrantes vão finalmente passar da condição de indesejáveis para a categoria de salvadores? Nem pensar nisso. Os imigrantes são considerados como um fator logístico, à semelhança das máquinas, das ferramentas, das infra-estruturas. Eles estão em todo o lado em que o trabalho físico não pôde ainda ser eliminado. Mas no fundo são invisíveis. Tão invisíveis como esses novos escravos que entregam refeições ao domicílio. Não é que uns e outros não andem nas mesmas ruas onde nós andamos. Mas foram relegados para a invisibilidade.
Outra lição do “inverno demográfico”: ao decrescimento da população não corresponde um decréscimo da economia, até porque isso significa “crise”. Pelo contrário, enquanto de um lado há paragem, do outro continua a aceleração. Devemos então concluir: afinal, o aumento da população não é um verdadeiro problema. Quantos milhares de africanos são precisos para perfazerem uma pegada equivalente à de Elon Musk? O seu peso já é quase o de um continente inteiro. E virá o tempo em que, observando a Terra do seu observatório espacial, ouvirá uma voz que lhe diz: “Um dia, tudo isto será teu”.
Quando é que o Brasil se perdeu
Vendaval, voos cancelados, tempo perdido nas cadeiras de Congonhas. A única saída é pensar. Uma palavra me veio à mente diante das crises sucessivas do poder em Brasília: entropia. Não a uso com o rigor da termodinâmica, mas no sentido de que algo está se decompondo, como uma barra de gelo. O governo em crise com o Congresso em crise com o Supremo parece ter entrado num labirinto assustador.
Minha tentativa, num canto do aeroporto, é tentar achar a gênese dessa crise, reproduzir a frase inicial do romance de Vargas Llosa: “Quando é que o Peru se fodeu?”. De modo geral, em livros e artigos aponto o custo das eleições no Brasil, um dos mais altos do Ocidente. Ele acabou afastando os políticos do povo. Na verdade, os meios para alcançar o povo — marqueteiros e caros programas de TV — passaram a dominar o imaginário político. Hoje, para reparar isso, o país dá R$ 5 bilhões aos partidos em cada eleição.
No caso específico do Congresso, um marco importante foi a descoberta de que o fisiologismo é a grande alavanca para eleger presidentes. Desde Severino Cavalcante, isso ficou claro, e o tipo de líder que surgiu não é só o que abandona os escrúpulos, mas o que interpreta bem os interesses pessoais dos congressistas. Não há mais grande debate sobre os rumos do país. Isso é poesia diante da tarefa principal: obter o máximo de dinheiro e dar o mínimo de transparência a sua aplicação.
O Supremo tentou conter esse movimento, desde Rosa Weber. Mas em vão. O STF tem uma retaguarda frágil. Os supersalários do Judiciário são um ponto de vulnerabilidade. Mas o que corroeu seu prestígio foi a decisão de que parentes podem advogar, e os ministros não precisam se declarar impedidos ao julgar as causas de clientes de escritórios em que seus familiares trabalham.
A primeira grande crise se deu quando a Receita pesquisou as contas das mulheres de Gilmar Mendes e Dias Toffoli, ambas advogadas. Toffoli era presidente do STF e designou Alexandre de Moraes para instaurar o inquérito das fake news, que perdura até hoje. No princípio, chegaram a censurar a revista Crusoé por ter falado das ligações de Toffoli com o dono da Odebrecht.
Toffoli e Moraes se fortaleceram. Coube ao primeiro anular processos e multas da Lava-Jato. Ao segundo, coordenar a luta contra o avanço da extrema direita. A eclosão do escândalo do Banco Master traz à tona os problemas que resistiram à Lava-Jato e à própria derrota da extrema direita. A questão inicial, soterrada por tantos fatos históricos importantes, continuava viva: os parentes e as fortunas que se fazem nessa advocacia familiar.
Toffoli anulou multas bilionárias da JBS, e sua mulher chegou a trabalhar para a empresa. Toffoli viaja em jatinho com um advogado do Banco Master e resolve impor sigilo ao escândalo financeiro. No celular do dono do Master aparece um contrato com a mulher de Alexandre de Moraes, Viviane Barci, num valor de R$ 3,6 milhões por mês.
Olhando para trás, vê-se que a Receita estava num caminho válido. As contas das mulheres dos ministros saíram de cena e entraram as fake news. Mas o problema que se queria evitar ressurge com toda a força no escândalo do Master. Bem que Freud lembrava o famoso retorno do reprimido. Aí está ele de volta.
Minha tentativa, num canto do aeroporto, é tentar achar a gênese dessa crise, reproduzir a frase inicial do romance de Vargas Llosa: “Quando é que o Peru se fodeu?”. De modo geral, em livros e artigos aponto o custo das eleições no Brasil, um dos mais altos do Ocidente. Ele acabou afastando os políticos do povo. Na verdade, os meios para alcançar o povo — marqueteiros e caros programas de TV — passaram a dominar o imaginário político. Hoje, para reparar isso, o país dá R$ 5 bilhões aos partidos em cada eleição.
No caso específico do Congresso, um marco importante foi a descoberta de que o fisiologismo é a grande alavanca para eleger presidentes. Desde Severino Cavalcante, isso ficou claro, e o tipo de líder que surgiu não é só o que abandona os escrúpulos, mas o que interpreta bem os interesses pessoais dos congressistas. Não há mais grande debate sobre os rumos do país. Isso é poesia diante da tarefa principal: obter o máximo de dinheiro e dar o mínimo de transparência a sua aplicação.
O Supremo tentou conter esse movimento, desde Rosa Weber. Mas em vão. O STF tem uma retaguarda frágil. Os supersalários do Judiciário são um ponto de vulnerabilidade. Mas o que corroeu seu prestígio foi a decisão de que parentes podem advogar, e os ministros não precisam se declarar impedidos ao julgar as causas de clientes de escritórios em que seus familiares trabalham.
A primeira grande crise se deu quando a Receita pesquisou as contas das mulheres de Gilmar Mendes e Dias Toffoli, ambas advogadas. Toffoli era presidente do STF e designou Alexandre de Moraes para instaurar o inquérito das fake news, que perdura até hoje. No princípio, chegaram a censurar a revista Crusoé por ter falado das ligações de Toffoli com o dono da Odebrecht.
Toffoli e Moraes se fortaleceram. Coube ao primeiro anular processos e multas da Lava-Jato. Ao segundo, coordenar a luta contra o avanço da extrema direita. A eclosão do escândalo do Banco Master traz à tona os problemas que resistiram à Lava-Jato e à própria derrota da extrema direita. A questão inicial, soterrada por tantos fatos históricos importantes, continuava viva: os parentes e as fortunas que se fazem nessa advocacia familiar.
Toffoli anulou multas bilionárias da JBS, e sua mulher chegou a trabalhar para a empresa. Toffoli viaja em jatinho com um advogado do Banco Master e resolve impor sigilo ao escândalo financeiro. No celular do dono do Master aparece um contrato com a mulher de Alexandre de Moraes, Viviane Barci, num valor de R$ 3,6 milhões por mês.
Olhando para trás, vê-se que a Receita estava num caminho válido. As contas das mulheres dos ministros saíram de cena e entraram as fake news. Mas o problema que se queria evitar ressurge com toda a força no escândalo do Master. Bem que Freud lembrava o famoso retorno do reprimido. Aí está ele de volta.
A consciência das palavras
Nós, escritores, ficamos preocupados por causa de palavras. Palavras significam. Palavras apontam. São flechas. Flechas cravadas na pele dura da realidade. E quanto mais portentosa, mais geral for a palavra, mais também se parecerá com um quarto ou um túnel. Elas podem expandir-se, ou bater em retirada. Podem impregnar-se de mau cheiro. Muitas vezes nos farão lembrar outros quartos, onde gostaríamos de morar, ou onde achamos que já estamos vivendo. Elas podem ser espaços onde não podemos habitar, pois perdemos a arte ou a sabedoria para tal. E por fim aqueles volumes de intenção mental que não sabemos mais como residir serão abandonados, lacrados com tábuas, trancados.
O que queremos dizer, por exemplo, com a palavra “paz”? Uma ausência de conflito? Um esquecimento? Perdão? Ou um grande cansaço, uma exaustão, um esvaziamento do rancor?
Parece-me que o que a maioria das pessoas entende por “paz” é a vitória. A vitória do seu lado. É isso o que “paz” significa para “eles”, enquanto, para os outros, paz quer dizer derrota.
Se predominar a ideia de que paz, embora em princípio desejada, acarreta uma inaceitável renúncia de demandas legítimas, então o rumo mais plausível será a prática da guerra por todos os meios possíveis. Se não fraudulentos, os apelos de paz serão tidos certamente como prematuros. A paz se torna um espaço onde as pessoas não sabem mais como habitar. A paz tem de ser repovoada.
E o que entendemos por “honra”?
Honra como um exigente padrão de conduta privada parece pertencer a um tempo muito remoto. Mas o costume de conferir honrarias — lisonjear a nós mesmos e uns aos outros — continua inabalável.
Conferir uma honraria é confirmar um padrão que, supostamente, compartilhamos e defendemos. Aceitar uma honraria é acreditar, por um momento, que o merecemos. (O máximo que podemos dizer, com toda a decência, é que não somos indignos da homenagem.) Recusar uma honraria parece rude, insociável, pretensioso.
Um prêmio acumula honraria — e a capacidade de conferir honrarias — pelas escolhas anteriores de seus vencedores.
Segundo esse critério, examinemos o polemicamente chamado prêmio Jerusalém, que na sua história relativamente breve foi conferido a alguns dos melhores escritores da segunda metade do século XX. Embora seja, por todos os critérios óbvios, um prêmio literário, não é chamado de prêmio Jerusalém de Literatura, mas prêmio Jerusalém pela Liberdade do Indivíduo na Sociedade.
Será que todos os escritores que ganharam o prêmio lutaram de fato pela Liberdade do Indivíduo na Sociedade? Será isso o que eles — agora devo dizer “nós” — têm em comum?
Creio que não.
Eles não representam apenas um amplo espectro de opiniões políticas. Alguns deles mal tocaram nas Grandes Palavras: liberdade, indivíduo, sociedade...
Mas o que importa não é o que um escritor diz, é o que um escritor é.
Escritores — assim denomino os membros da comunidade da literatura — são emblemas da persistência (e da necessidade) de visão individual.
Prefiro usar “individual” como adjetivo a usá-la como substantivo.
A propaganda incessante em nosso tempo em favor do “individual” parece-me profundamente suspeita, pois “individualidade”, em si mesma, se torna cada vez mais um sinônimo de egoísmo. Uma sociedade capitalista parece agir em interesse próprio quando elogia a “individualidade” e a “liberdade” — que pode significar pouco mais do que o direito de engrandecimento perpétuo do eu, e a liberdade de fazer compras, adquirir, esgotar, consumir, tornar obsoleto.
Não creio que exista nenhum valor intrínseco no cultivo do eu. E acho que não existe nenhuma cultura (empregando o termo de modo normativo) sem um padrão de altruísmo, de consideração pelos outros. Creio de fato que existe um valor intrínseco em ampliar a nossa ideia do que a vida humana pode ser. Se a literatura me mobilizou como um projeto, primeiro como leitora e depois como escritora, ela é uma extensão da minha solidariedade aos outros eus, aos outros domínios, outros sonhos, outras palavras, outras áreas de preocupação.
Como escritora, criadora de literatura, sou tanto uma narradora como uma pensadora. As ideias me põem em movimento. Mas romances são feitos não de ideias, e sim de formas. Formas de linguagem. Formas de expressividade. Não tenho uma história na minha cabeça antes de ter uma forma. (Como disse Vladimir Nabokov: “O padrão da coisa precede a coisa”.) E — implícita ou tacitamente — romances são feitos da noção que o escritor tem daquilo que a literatura é ou pode ser.
A obra de todo escritor, toda performance literária é uma justificação da literatura em si, ou redunda nisso. A defesa da literatura tornou-se um dos temas principais do escritor. Mas, como observou Oscar Wilde, “uma verdade na arte é aquela cujo oposto é também verdadeiro”. Parafraseando Wilde, eu diria: uma verdade sobre a literatura é aquela cujo oposto é também verdadeiro.
Assim, a literatura — e falo de forma prescritiva, não apenas de forma descritiva — é autoconsciência, dúvida, escrúpulo, rigor. É também — de novo, de forma prescritiva e também descritiva — canto, espontaneidade, celebração, êxtase.
Ideias sobre literatura — à diferença das ideias sobre, digamos, o amor — quase sempre surgem como uma reação às ideias de outras pessoas. São ideias reativas.
Digo isso porque tenho — ou a maioria das pessoas tem — a impressão de que você está dizendo aquilo.
Desse modo quero abrir espaço para uma paixão maior ou para uma prática diferente. Ideias dão permissão — e quero dar permissão a um sentimento e a uma prática diferentes.
Minha opinião é que qualquer explicação da literatura é falsa — ou seja, redutora; meramente polêmica. Para falar de forma verdadeira sobre literatura, é preciso falar por meio de paradoxos.
Assim, toda obra de literatura importante, que merece o nome de literatura, encarna um ideal de singularidade, de uma voz singular. Mas a literatura, que é uma acumulação, encarna um ideal de pluralidade, de multiplicidade, de promiscuidade.
Toda ideia de literatura que podemos ter — literatura como engajamento social, literatura como busca de intensidades espirituais privadas, literatura nacional, literatura mundial — é, ou pode tornar-se, uma forma de deleite espiritual, vaidade ou autocongratulação.
A literatura é um sistema — um sistema plural — de padrões, ambições, lealdades. Parte da função ética da literatura é a lição do valor da diversidade.
Claro, a literatura deve agir dentro de fronteiras. (Como todas as atividades humanas. A única atividade sem fronteiras é estar morto.) O problema é que as fronteiras que a maioria das pessoas quer traçar sufocariam a liberdade da literatura de ser o que ela pode ser, com toda a sua inventividade e capacidade de se agitar.
Vivemos numa cultura empenhada em unificar as cobiças, e uma das línguas que compõem a vasta e gloriosa multiplicidade de idiomas do mundo, aquela em que falo e escrevo, é agora a língua dominante. O inglês passou a desempenhar, numa escala mundial e para populações muito maiores dentro dos países do mundo, um papel semelhante ao desempenhado pelo latim na Europa medieval.
Porém, como vivemos numa cultura cada vez mais global e transnacional, estamos também atolados em demandas cada vez mais fragmentadas, feitas por tribos reais ou auto-instituídas há pouco tempo. As antigas ideias humanísticas — da república das letras, da literatura do mundo — estão sob ataque em toda parte. Para alguns, elas parecem ingênuas e marcadas por sua origem no grande ideal europeu — alguns diriam ideal eurocêntrico — de valores universais.
As ideias de “liberdade” e de “direitos” sofreram uma degradação chocante nos anos recentes. Em muitas comunidades, os direitos coletivos têm mais peso do que os direitos individuais.
A esse respeito, o que os criadores de literatura fazem pode, implicitamente, fomentar a credibilidade da expressão livre e dos direitos individuais. Mesmo quando os criadores de literatura consagraram a sua obra em favor de tribos ou comunidades a que pertencem, sua realização como escritores depende de conseguir transcender esse objetivo.
As virtudes que tornam um dado escritor importante ou admirável podem, todas elas, ser localizadas no âmbito da singularidade da voz do escritor.
Mas tal singularidade, cultivada em particular e fruto de um longo aprendizado na reflexão e na solidão, é constantemente testada pelo papel social que os escritores se sentem chamados a desempenhar.
Não questiono o direito de um escritor empenhar-se em debates sobre questões públicas, de assumir causas comuns e exercitar a solidariedade com pessoas que pensem como ele.
Tampouco quero dizer que tais atividades levam o escritor para muito longe do local interior, solitário, excêntrico, onde se faz a literatura. O mesmo acontece com quase todas as outras atividades que constituem a vida.
Mas uma coisa é participar voluntariamente, movido por imperativos de consciência ou de afeição, do debate público e da ação pública. Outra coisa é emitir opiniões — tiradas moralistas — sob encomenda.
Não: Estou farto de tudo. Mas sim: A favor disso, contra aquilo.
Porém o escritor não deve ser uma máquina de opinar. Como disse um poeta negro do meu país, quando criticado por outros afro-americanos por não escrever poemas sobre as crueldades do racismo, “um escritor não é uma dessas maquininhas em que a gente escolhe a música que vai tocar”.
A primeira tarefa do escritor é não ter opiniões, mas dizer a verdade... e recusar-se a ser cúmplice de mentiras e de informações falsas. Literatura é o lar da nuance e da oposição às vozes da simplificação. A tarefa do escritor é tornar mais difícil acreditar nos saqueadores da mente. A tarefa do escritor é nos fazer ver o mundo como é, repleto de muitas e diferentes demandas, partes, experiências.
É tarefa do escritor retratar as realidades: as realidades sórdidas, as realidades que causam enlevo. É da essência da sabedoria fornecida pela literatura (a pluralidade da realização literária) ajudar-nos a compreender que, o que quer que esteja acontecendo, sempre se passa algo mais.
Sou assombrada por esse “algo mais”.
Sou assombrada pelo conflito entre os direitos e os valores que prezo. Por exemplo, às vezes, dizer a verdade não favorece a justiça. Às vezes, favorecer a justiça pode acarretar a supressão de boa parte da verdade.
Muitos dos mais notáveis escritores do século XX, em sua atividade como vozes públicas, foram cúmplices da supressão da verdade a fim de favorecer aquilo que entendiam ser (e era, em muitos casos) causas justas.
Minha visão pessoal é de que, se eu tiver de escolher entre a verdade e a justiça — claro, não quero escolher —, escolherei a verdade.
Claro, creio na ação íntegra. Mas será que é o escritor quem age?
São três coisas diferentes: falar, o que estou fazendo agora; escrever, aquilo que me confere o direito que eu tiver a este prêmio incomparável; e ser, ser uma pessoa que acredita na ação solidária com os outros.
Como disse Roland Barthes, certa vez: “Quem fala não é quem escreve e quem escreve não é quem é”.
E é claro que tenho opiniões, opiniões políticas, algumas formadas com base na leitura e na discussão, e na reflexão, mas não na experiência direta. Permitam-me compartilhar com os senhores duas de minhas opiniões — opiniões bastante previsíveis, à luz das atitudes públicas que tenho tomado em assuntos sobre os quais possuo algum conhecimento direto.
Creio que a doutrina da responsabilidade coletiva, como um argumento para a punição coletiva, nunca é justificada, nem militar, nem eticamente. Refiro-me ao emprego de um poder de fogo desproporcional contra civis, a demolição de suas casas e a destruição de seus pomares e bosques, a supressão dos seus meios de vida e do seu direito a um emprego, à escola, aos serviços médicos, livre acesso às cidades e comunidades vizinhas... tudo como castigo por uma atividade militar hostil que pode estar ou não nos arredores da área habitada por esses civis.
Creio também que não pode haver paz aqui antes que a implantação de comunidades israelenses nos territórios seja suspensa e que depois — mais cedo ou mais tarde — sejam desmanteladas essas colônias, com a retirada das unidades militares lá acumuladas com a finalidade de protegê-las.
Aposto que essas duas opiniões minhas são compartilhadas por muitos aqui neste salão. Para usar uma antiga expressão americana, desconfio que estou pregando para convertidos.
Mas, como escritora, defendo essas duas opiniões? Ou não as defendo como uma pessoa de consciência e depois uso minha posição como escritora para somar minha voz à de outros, dizendo a mesma coisa? A influência que um escritor pode exercer é puramente ocasional. Hoje, é um aspecto da cultura da celebridade.
Há algo de vulgar na disseminação pública de opiniões sobre assuntos a respeito dos quais não se tem um conhecimento direto e amplo. Se falo do que não sei, ou só sei por alto, será um mero tráfico de opiniões.
Digo isso como uma questão de honra, para voltar ao princípio. A honra da literatura. O projeto de ter uma voz individual. Escritores sérios, criadores de literatura, não devem apenas exprimir-se de forma diferente do discurso hegemônico dos meios de comunicação de massa. Eles devem estar em oposição à lengalenga comunal dos telejornais e dos programas de entrevistas.
O problema com as opiniões é que a pessoa fica presa a elas. E toda vez que os escritores agem como escritores, sempre veem... mais.
O que quer que exista, existe sempre mais. O que quer que esteja acontecendo, algo mais está acontecendo, também.
Se a literatura em si, esse grande projeto que foi conduzido (até onde podemos abarcar) ao longo de três milênios, corporifica uma sabedoria — e eu creio que sim e que isso constitui o cerne da relevância que atribuímos à literatura —, é por ela demonstrar a natureza múltipla de nossos destinos privados e comuns. A literatura vai nos lembrar que pode haver contradições, às vezes conflitos irredutíveis, entre os valores que mais prezamos. (Eis o significado de “tragédia”.) Ela vai nos lembrar do “também” e do “algo mais”.
A sabedoria da literatura é inteiramente antitética às opiniões. “Nada é minha última palavra em nenhum assunto”, disse Henry James. Fornecer opiniões, mesmo opiniões corretas — sempre que pedirem —, deprecia aquilo que romancistas e poetas fazem de melhor, que é patrocinar a reflexão, buscar a complexidade.
A informação jamais substituirá a iluminação. Mas algo que parece informação, exceto por ser melhor do que ela — refiro-me à condição de ser informado; refiro-me ao conhecimento concreto, específico, detalhado, historicamente denso, conhecimento de primeira mão —, é o pré-requisito indispensável para um escritor exprimir opiniões em público.
Deixemos que os outros, as celebridades e os políticos, façam pouco de nós; mintam. Se ser escritor e ser também uma voz pública pudesse ter alguma serventia maior, seria para que os escritores considerassem que a formulação de opiniões e juízos é uma responsabilidade difícil.
Um outro problema com opiniões. Elas são fatores de auto-imobilização. O que os escritores fazem deveria nos libertar, nos sacudir. Abrir avenidas de compaixão e de interesses novos. Lembrar-nos que podemos, simplesmente podemos, aspirar a ser diferentes, e melhores, do que somos. Lembrar-nos que podemos mudar.
Como disse o cardeal Newman: “Num mundo mais elevado, é diferente, mas aqui embaixo viver é mudar, e ser perfeito é ter mudado muitas vezes”.
E o que entendo pela palavra “perfeição”? Não tentarei explicar, mas apenas dizer: a Perfeição me faz rir. Não de modo sarcástico, apresso-me em acrescentar. Com alegria.
Sou grata por ter recebido o prêmio Jerusalém. Aceito-o como uma honraria para todos aqueles comprometidos com o desígnio da literatura. Aceito-o em homenagem a todos os escritores e leitores em Israel e na Palestina que lutam para criar uma literatura feita de vozes singulares e da multiplicidade de verdades. Aceito o prêmio em nome da paz e da reconciliação das comunidades feridas e temerosas. A paz necessária. Concessões necessárias e disposições novas.
O que queremos dizer, por exemplo, com a palavra “paz”? Uma ausência de conflito? Um esquecimento? Perdão? Ou um grande cansaço, uma exaustão, um esvaziamento do rancor?
Parece-me que o que a maioria das pessoas entende por “paz” é a vitória. A vitória do seu lado. É isso o que “paz” significa para “eles”, enquanto, para os outros, paz quer dizer derrota.
Se predominar a ideia de que paz, embora em princípio desejada, acarreta uma inaceitável renúncia de demandas legítimas, então o rumo mais plausível será a prática da guerra por todos os meios possíveis. Se não fraudulentos, os apelos de paz serão tidos certamente como prematuros. A paz se torna um espaço onde as pessoas não sabem mais como habitar. A paz tem de ser repovoada.
Recolonizada...
E o que entendemos por “honra”?
Honra como um exigente padrão de conduta privada parece pertencer a um tempo muito remoto. Mas o costume de conferir honrarias — lisonjear a nós mesmos e uns aos outros — continua inabalável.
Conferir uma honraria é confirmar um padrão que, supostamente, compartilhamos e defendemos. Aceitar uma honraria é acreditar, por um momento, que o merecemos. (O máximo que podemos dizer, com toda a decência, é que não somos indignos da homenagem.) Recusar uma honraria parece rude, insociável, pretensioso.
Um prêmio acumula honraria — e a capacidade de conferir honrarias — pelas escolhas anteriores de seus vencedores.
Segundo esse critério, examinemos o polemicamente chamado prêmio Jerusalém, que na sua história relativamente breve foi conferido a alguns dos melhores escritores da segunda metade do século XX. Embora seja, por todos os critérios óbvios, um prêmio literário, não é chamado de prêmio Jerusalém de Literatura, mas prêmio Jerusalém pela Liberdade do Indivíduo na Sociedade.
Será que todos os escritores que ganharam o prêmio lutaram de fato pela Liberdade do Indivíduo na Sociedade? Será isso o que eles — agora devo dizer “nós” — têm em comum?
Creio que não.
Eles não representam apenas um amplo espectro de opiniões políticas. Alguns deles mal tocaram nas Grandes Palavras: liberdade, indivíduo, sociedade...
Mas o que importa não é o que um escritor diz, é o que um escritor é.
Escritores — assim denomino os membros da comunidade da literatura — são emblemas da persistência (e da necessidade) de visão individual.
Prefiro usar “individual” como adjetivo a usá-la como substantivo.
A propaganda incessante em nosso tempo em favor do “individual” parece-me profundamente suspeita, pois “individualidade”, em si mesma, se torna cada vez mais um sinônimo de egoísmo. Uma sociedade capitalista parece agir em interesse próprio quando elogia a “individualidade” e a “liberdade” — que pode significar pouco mais do que o direito de engrandecimento perpétuo do eu, e a liberdade de fazer compras, adquirir, esgotar, consumir, tornar obsoleto.
Não creio que exista nenhum valor intrínseco no cultivo do eu. E acho que não existe nenhuma cultura (empregando o termo de modo normativo) sem um padrão de altruísmo, de consideração pelos outros. Creio de fato que existe um valor intrínseco em ampliar a nossa ideia do que a vida humana pode ser. Se a literatura me mobilizou como um projeto, primeiro como leitora e depois como escritora, ela é uma extensão da minha solidariedade aos outros eus, aos outros domínios, outros sonhos, outras palavras, outras áreas de preocupação.
Como escritora, criadora de literatura, sou tanto uma narradora como uma pensadora. As ideias me põem em movimento. Mas romances são feitos não de ideias, e sim de formas. Formas de linguagem. Formas de expressividade. Não tenho uma história na minha cabeça antes de ter uma forma. (Como disse Vladimir Nabokov: “O padrão da coisa precede a coisa”.) E — implícita ou tacitamente — romances são feitos da noção que o escritor tem daquilo que a literatura é ou pode ser.
A obra de todo escritor, toda performance literária é uma justificação da literatura em si, ou redunda nisso. A defesa da literatura tornou-se um dos temas principais do escritor. Mas, como observou Oscar Wilde, “uma verdade na arte é aquela cujo oposto é também verdadeiro”. Parafraseando Wilde, eu diria: uma verdade sobre a literatura é aquela cujo oposto é também verdadeiro.
Assim, a literatura — e falo de forma prescritiva, não apenas de forma descritiva — é autoconsciência, dúvida, escrúpulo, rigor. É também — de novo, de forma prescritiva e também descritiva — canto, espontaneidade, celebração, êxtase.
Ideias sobre literatura — à diferença das ideias sobre, digamos, o amor — quase sempre surgem como uma reação às ideias de outras pessoas. São ideias reativas.
Digo isso porque tenho — ou a maioria das pessoas tem — a impressão de que você está dizendo aquilo.
Desse modo quero abrir espaço para uma paixão maior ou para uma prática diferente. Ideias dão permissão — e quero dar permissão a um sentimento e a uma prática diferentes.
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Digo isso quando você está dizendo aquilo não só porque os escritores são, às vezes, adversários profissionais. Não só para compensar o inevitável desequilíbrio ou unilateralidade de qualquer prática dotada do caráter de uma instituição — e a literatura é uma instituição —, mas porque a literatura é uma prática enraizada em aspirações intrinsecamente contraditórias.
Digo isso quando você está dizendo aquilo não só porque os escritores são, às vezes, adversários profissionais. Não só para compensar o inevitável desequilíbrio ou unilateralidade de qualquer prática dotada do caráter de uma instituição — e a literatura é uma instituição —, mas porque a literatura é uma prática enraizada em aspirações intrinsecamente contraditórias.
Minha opinião é que qualquer explicação da literatura é falsa — ou seja, redutora; meramente polêmica. Para falar de forma verdadeira sobre literatura, é preciso falar por meio de paradoxos.
Assim, toda obra de literatura importante, que merece o nome de literatura, encarna um ideal de singularidade, de uma voz singular. Mas a literatura, que é uma acumulação, encarna um ideal de pluralidade, de multiplicidade, de promiscuidade.
Toda ideia de literatura que podemos ter — literatura como engajamento social, literatura como busca de intensidades espirituais privadas, literatura nacional, literatura mundial — é, ou pode tornar-se, uma forma de deleite espiritual, vaidade ou autocongratulação.
A literatura é um sistema — um sistema plural — de padrões, ambições, lealdades. Parte da função ética da literatura é a lição do valor da diversidade.
Claro, a literatura deve agir dentro de fronteiras. (Como todas as atividades humanas. A única atividade sem fronteiras é estar morto.) O problema é que as fronteiras que a maioria das pessoas quer traçar sufocariam a liberdade da literatura de ser o que ela pode ser, com toda a sua inventividade e capacidade de se agitar.
Vivemos numa cultura empenhada em unificar as cobiças, e uma das línguas que compõem a vasta e gloriosa multiplicidade de idiomas do mundo, aquela em que falo e escrevo, é agora a língua dominante. O inglês passou a desempenhar, numa escala mundial e para populações muito maiores dentro dos países do mundo, um papel semelhante ao desempenhado pelo latim na Europa medieval.
Porém, como vivemos numa cultura cada vez mais global e transnacional, estamos também atolados em demandas cada vez mais fragmentadas, feitas por tribos reais ou auto-instituídas há pouco tempo. As antigas ideias humanísticas — da república das letras, da literatura do mundo — estão sob ataque em toda parte. Para alguns, elas parecem ingênuas e marcadas por sua origem no grande ideal europeu — alguns diriam ideal eurocêntrico — de valores universais.
As ideias de “liberdade” e de “direitos” sofreram uma degradação chocante nos anos recentes. Em muitas comunidades, os direitos coletivos têm mais peso do que os direitos individuais.
A esse respeito, o que os criadores de literatura fazem pode, implicitamente, fomentar a credibilidade da expressão livre e dos direitos individuais. Mesmo quando os criadores de literatura consagraram a sua obra em favor de tribos ou comunidades a que pertencem, sua realização como escritores depende de conseguir transcender esse objetivo.
As virtudes que tornam um dado escritor importante ou admirável podem, todas elas, ser localizadas no âmbito da singularidade da voz do escritor.
Mas tal singularidade, cultivada em particular e fruto de um longo aprendizado na reflexão e na solidão, é constantemente testada pelo papel social que os escritores se sentem chamados a desempenhar.
Não questiono o direito de um escritor empenhar-se em debates sobre questões públicas, de assumir causas comuns e exercitar a solidariedade com pessoas que pensem como ele.
Tampouco quero dizer que tais atividades levam o escritor para muito longe do local interior, solitário, excêntrico, onde se faz a literatura. O mesmo acontece com quase todas as outras atividades que constituem a vida.
Mas uma coisa é participar voluntariamente, movido por imperativos de consciência ou de afeição, do debate público e da ação pública. Outra coisa é emitir opiniões — tiradas moralistas — sob encomenda.
Não: Estou farto de tudo. Mas sim: A favor disso, contra aquilo.
Porém o escritor não deve ser uma máquina de opinar. Como disse um poeta negro do meu país, quando criticado por outros afro-americanos por não escrever poemas sobre as crueldades do racismo, “um escritor não é uma dessas maquininhas em que a gente escolhe a música que vai tocar”.
A primeira tarefa do escritor é não ter opiniões, mas dizer a verdade... e recusar-se a ser cúmplice de mentiras e de informações falsas. Literatura é o lar da nuance e da oposição às vozes da simplificação. A tarefa do escritor é tornar mais difícil acreditar nos saqueadores da mente. A tarefa do escritor é nos fazer ver o mundo como é, repleto de muitas e diferentes demandas, partes, experiências.
É tarefa do escritor retratar as realidades: as realidades sórdidas, as realidades que causam enlevo. É da essência da sabedoria fornecida pela literatura (a pluralidade da realização literária) ajudar-nos a compreender que, o que quer que esteja acontecendo, sempre se passa algo mais.
Sou assombrada por esse “algo mais”.
Sou assombrada pelo conflito entre os direitos e os valores que prezo. Por exemplo, às vezes, dizer a verdade não favorece a justiça. Às vezes, favorecer a justiça pode acarretar a supressão de boa parte da verdade.
Muitos dos mais notáveis escritores do século XX, em sua atividade como vozes públicas, foram cúmplices da supressão da verdade a fim de favorecer aquilo que entendiam ser (e era, em muitos casos) causas justas.
Minha visão pessoal é de que, se eu tiver de escolher entre a verdade e a justiça — claro, não quero escolher —, escolherei a verdade.
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São três coisas diferentes: falar, o que estou fazendo agora; escrever, aquilo que me confere o direito que eu tiver a este prêmio incomparável; e ser, ser uma pessoa que acredita na ação solidária com os outros.
Como disse Roland Barthes, certa vez: “Quem fala não é quem escreve e quem escreve não é quem é”.
E é claro que tenho opiniões, opiniões políticas, algumas formadas com base na leitura e na discussão, e na reflexão, mas não na experiência direta. Permitam-me compartilhar com os senhores duas de minhas opiniões — opiniões bastante previsíveis, à luz das atitudes públicas que tenho tomado em assuntos sobre os quais possuo algum conhecimento direto.
Creio que a doutrina da responsabilidade coletiva, como um argumento para a punição coletiva, nunca é justificada, nem militar, nem eticamente. Refiro-me ao emprego de um poder de fogo desproporcional contra civis, a demolição de suas casas e a destruição de seus pomares e bosques, a supressão dos seus meios de vida e do seu direito a um emprego, à escola, aos serviços médicos, livre acesso às cidades e comunidades vizinhas... tudo como castigo por uma atividade militar hostil que pode estar ou não nos arredores da área habitada por esses civis.
Creio também que não pode haver paz aqui antes que a implantação de comunidades israelenses nos territórios seja suspensa e que depois — mais cedo ou mais tarde — sejam desmanteladas essas colônias, com a retirada das unidades militares lá acumuladas com a finalidade de protegê-las.
Aposto que essas duas opiniões minhas são compartilhadas por muitos aqui neste salão. Para usar uma antiga expressão americana, desconfio que estou pregando para convertidos.
Mas, como escritora, defendo essas duas opiniões? Ou não as defendo como uma pessoa de consciência e depois uso minha posição como escritora para somar minha voz à de outros, dizendo a mesma coisa? A influência que um escritor pode exercer é puramente ocasional. Hoje, é um aspecto da cultura da celebridade.
Há algo de vulgar na disseminação pública de opiniões sobre assuntos a respeito dos quais não se tem um conhecimento direto e amplo. Se falo do que não sei, ou só sei por alto, será um mero tráfico de opiniões.
Digo isso como uma questão de honra, para voltar ao princípio. A honra da literatura. O projeto de ter uma voz individual. Escritores sérios, criadores de literatura, não devem apenas exprimir-se de forma diferente do discurso hegemônico dos meios de comunicação de massa. Eles devem estar em oposição à lengalenga comunal dos telejornais e dos programas de entrevistas.
O problema com as opiniões é que a pessoa fica presa a elas. E toda vez que os escritores agem como escritores, sempre veem... mais.
O que quer que exista, existe sempre mais. O que quer que esteja acontecendo, algo mais está acontecendo, também.
Se a literatura em si, esse grande projeto que foi conduzido (até onde podemos abarcar) ao longo de três milênios, corporifica uma sabedoria — e eu creio que sim e que isso constitui o cerne da relevância que atribuímos à literatura —, é por ela demonstrar a natureza múltipla de nossos destinos privados e comuns. A literatura vai nos lembrar que pode haver contradições, às vezes conflitos irredutíveis, entre os valores que mais prezamos. (Eis o significado de “tragédia”.) Ela vai nos lembrar do “também” e do “algo mais”.
A sabedoria da literatura é inteiramente antitética às opiniões. “Nada é minha última palavra em nenhum assunto”, disse Henry James. Fornecer opiniões, mesmo opiniões corretas — sempre que pedirem —, deprecia aquilo que romancistas e poetas fazem de melhor, que é patrocinar a reflexão, buscar a complexidade.
A informação jamais substituirá a iluminação. Mas algo que parece informação, exceto por ser melhor do que ela — refiro-me à condição de ser informado; refiro-me ao conhecimento concreto, específico, detalhado, historicamente denso, conhecimento de primeira mão —, é o pré-requisito indispensável para um escritor exprimir opiniões em público.
Deixemos que os outros, as celebridades e os políticos, façam pouco de nós; mintam. Se ser escritor e ser também uma voz pública pudesse ter alguma serventia maior, seria para que os escritores considerassem que a formulação de opiniões e juízos é uma responsabilidade difícil.
Um outro problema com opiniões. Elas são fatores de auto-imobilização. O que os escritores fazem deveria nos libertar, nos sacudir. Abrir avenidas de compaixão e de interesses novos. Lembrar-nos que podemos, simplesmente podemos, aspirar a ser diferentes, e melhores, do que somos. Lembrar-nos que podemos mudar.
Como disse o cardeal Newman: “Num mundo mais elevado, é diferente, mas aqui embaixo viver é mudar, e ser perfeito é ter mudado muitas vezes”.
E o que entendo pela palavra “perfeição”? Não tentarei explicar, mas apenas dizer: a Perfeição me faz rir. Não de modo sarcástico, apresso-me em acrescentar. Com alegria.
Sou grata por ter recebido o prêmio Jerusalém. Aceito-o como uma honraria para todos aqueles comprometidos com o desígnio da literatura. Aceito-o em homenagem a todos os escritores e leitores em Israel e na Palestina que lutam para criar uma literatura feita de vozes singulares e da multiplicidade de verdades. Aceito o prêmio em nome da paz e da reconciliação das comunidades feridas e temerosas. A paz necessária. Concessões necessárias e disposições novas.
Anulação dos estereótipos. A necessária persistência do diálogo. Aceito o prêmio — este prêmio internacional, patrocinado por uma feira internacional de livros — como um evento que honra, acima de tudo, a república internacional das letras.
Susan Sontag, discurso ao receber o prêmio Jerusalém em "Ao Mesmo Tempo — Ensaios e Discursos"
Susan Sontag, discurso ao receber o prêmio Jerusalém em "Ao Mesmo Tempo — Ensaios e Discursos"
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